— Na minha última aventura no plano físico, devo dizer que falhei, pois coloquei termo a ela propositadamente.
Fui tomado de surpresa pela confissão de Miguel e, de pronto, demandei-lhe:
— Não entendi, esclareça-me, por gentileza.
— Eu retornei ao plano espiritual por meio do suicídio, César.
— Desculpe-me por fazê-lo recordar — falei um tanto encabulado.
— Não se desculpe meu irmão. É claro que me sinto muito envergonhado e arrependido pelo ato tresloucado, mas hoje entendo a graça de Deus, que me oferta mais uma chance. E foi bom você ter me lembrado disso, porque assim você começa a ver que tenho necessidade de reencarnar. Coloquei termo a minha vida por motivos que hoje bem sei que são muito fúteis. A bem da verdade, qualquer motivo será sempre fútil diante de tamanha falta. Tenho medo de falhar novamente.
E porque começara a embargar a voz, Miguel fez uma pausa e mudou de assunto.
— Sabe, hoje pela manhã tive a oportunidade de conhecer o lar que irei habitar — disse ele mostrando um largo sorriso.
— Que ótimo, meu amigo! — falei envolvendo Miguel com a mesma felicidade com que ele me falava aquelas palavras.
E agora, eu é que parecia estar fazendo o papel de orientador, ao que Miguel observou:
— Vá se acostumando com isso, meu bom amigo.
— Com o que? — perguntei.
— Falo desses momentos em que você precisará me abraçar e dizer “Estou aqui”, “Não desista”, pois eu vou precisar muito ter você por perto.
— Ficarei honrado em acompanhá-lo, se esta for a vontade de Deus. Mas bem sei que se assim suceder, meu trabalho não será muito difícil.
Rimos, e agora toda alegria típica de Miguel voltava e ele já não lamentava mais o passado que eu o havia feito recordar.
— Não aposte muito, meu amigo. Darei muito trabalho — falou-me.
— Obrigado, Miguel.
— Pelo quê, César?
— Por tudo que você está fazendo por mim, desde o momento em que aqui cheguei.
— Sendo assim, penso que sou eu quem deve lhe ser grato, porque do momento que você chegou aqui, tive a oportunidade de exercer essa tarefa de acompanhá-lo.
— César, tenho uma coisa para lhe mostrar e uma pessoa para lhe apresentar, pessoa essa que deseja muito nos falar.
— O que é e de quem se trata? — indaguei curioso.
— Venha!
Segui Miguel até o Centro de Estudos.
O prédio ocupa quase toda a Colônia, fazendo um semicírculo, que é apenas interrompido ao meio pelo enorme prédio que constitui o Centro de Convenções do Recanto.
Quando entramos no Centro de Estudos, pude ver no chão, em letras garrafais, o nome do prédio: Centro Educacional de Desenvolvimento Artístico e Tecnológico Bauhaus .
Fiquei curioso e logo sabatinei a Miguel.
— Qual o significado desse nome “Bauhaus”, amigo?
— Aqui, a exemplo da Escola Alemã de Artes, nós procuramos desenvolver a liberdade do pensamento artístico e unir os conhecimentos científicos à beleza das artes, a fim de catalisar a capacidade que ambos têm de espiritualizar o ser.
Aquela foi a primeira vez que entrei na biblioteca — um lugar indescritível! Senti-me uma formiga dentro daquele ambiente de prateleiras altas, forradas de livros dos mais diversos assuntos. Fiquei extasiado!
Observei a movimentação de amigos que volitavam de um lado para outro e pude perceber que algum não liam os livros que tinham em mãos, mas, como numa espécie de interação, misturavam-se ao conteúdo daquele objeto de saber e absorviam os ensinos ali existentes.
Acerca disso, perguntei ao amigo que me acompanhava:
— Miguel, o que se aprende aqui? Percebo que alguns irmãos não volitam e outros tantos que leem os livros normalmente, enquanto alguns, por exemplo — disse eu, apontando para o alto, onde voejavam alguns irmãos —, aqueles parecem sugar o conteúdo dos livros...!
— Aqui se aprende desde boas práticas alimentares até conhecimentos profundos de artes, ciências e filosofia. Aqueles irmãos que estão sentados estudando nos livros são iniciantes, assim como você, e ainda não aprenderam as técnicas para absorvimento fluídico de conteúdo. Também ainda não sabem volitar, por isso não estão lá no alto das prateleiras.
— Nunca o vi volitando, Miguel, você não sabe?
— Sei, sei sim — disse-me Miguel.
— Gostaria de ver, quer me mostrar?
— Você já me viu no dia que prestamos socorro ao Ícaro. Estávamos todos volitando, inclusive você
— É verdade, mas não falo disso; quando digo que não o vejo volitar, quero dizer que você não se desloca dessa forma, pelo menos, não quando em minha companhia.
— Penso que não seria muito elegante de minha parte não acompanhá-lo na caminhada.
Naquele momento chegamos a uma porta à direita do salão principal da biblioteca. Miguel bateu e do outro lado nos foi possível ouvir a permissão para que entrássemos.
— Olá, meus amigos! — cumprimentou-nos um homem de semblante jovem, traços gregos, prontamente afável — Sentem-se, por favor. Quero que saibam desde já que para mim é uma verdadeira honra recebê-los.
— Nós é que agradecemos senhor Laerte — falou-lhe Miguel.
— Por favor, “senhor” não, pois somos amigos! Não necessitamos dessas formalidades.
— Olá, prazer! Meu nome é César — falei de pronto, tomando a liberdade de me apresentar.
— Laerte — falou-me gentilmente. — Faço de suas palavras as minhas, acrescidas de agradecimentos, pois Miguel e Inácio me falaram de seu trabalho junto a Ícaro. Sinto-me imensamente feliz por recebê-lo em nosso grupo de estudos mediúnicos.
— Como assim? Eu já vou fazer parte do grupo?
— Ainda não, meu irmão — falou-me Laerte —. Antes fará um preparatório junto ao nosso irmão Inácio, para que você tenha bases, para a prova de aptidão, mas isso não será problema para você, eu tenho certeza.
— Já estou ficando com medo desta tão falada avaliação.
Eles riram.
— Às vezes, você é engraçadamente espontâneo — disse Miguel.
— Bem, amigos — interviu Laerte — pedi para que vocês viessem aqui por dois motivos. Primeiro, para que Miguel receba seu projeto de reencarnação, ou seja, que faça suas escolhas entre as sugeridas, conforme o seu perfil.
Laerte entregou a Miguel um interessante dispositivo, que ele guardou debaixo do braço.
— Segundo motivo pelo qual os solicitei aqui — continuou Laerte —, é que esta noite Diogo e Rafaela pretendem ter uma noite romântica. Sabemos que muitos irmãos que não estão nada felizes com o amparo que Ícaro recebeu de nós farão de tudo para que os planos traçados não se concretizem. Peço-lhes, então, que os irmãos possam acompanhar a Irmã Clarisse e a Irmã Madalena na caravana que tratará de manter o ambiente propício para que não haja perniciosas interferências, mas somente boas ações, emanações essas que farão com que Ícaro faça a ligação com aquela que será sua mãe.
— Irmão, eu agradeço a oportunidade — comecei falando —, mas não creio ser apto à execução de um trabalho desta importância.
— Você não será muito exigido, César. Somente cuidará em ajudar àqueles que serão socorridos, pois muitos irmãos que dali se aproximarem serão imediatamente tomados de um sono irresistível, resultado dos fluidos calmantes deixados por nós, que cuidamos da harmonia do ambiente. Sendo assim, amigo, você não estará envolvido com o trabalho da manutenção harmônica propriamente dita e sim com a importante tarefa de recolher e trazer para nosso hospital os irmãos que aqui poderão receber os devidos cuidados.
Após breve pausa, Laerte continuou:
— Você também, Miguel, ficará responsável por esta mesma tarefa. E não se preocupem, pois irmãos de outras colônias também estarão junto a vocês, já que nem todos os amigos que receberão socorro serão trazidos para cá.
Laerte então nos acompanhou até a porta de entrada da biblioteca e novamente nos agradeceu, desta vez com um beijo em nossas faces.
Com um amável sorriso, dirigiu-se a Miguel:
— Querido irmão, estude bem as propostas e lhe adianto que entre elas, há uma surpresa que, acredito eu, irá lhe agradar muito.
— Estudarei com carinho e tenho certeza que todas me serão de grande valia — falou Miguel.
Saímos da biblioteca e fomos para o hospital.
*
Eu ainda repousava no quarto onde acordei quando aqui cheguei. Nesses tempos eu tinha o hospital como minha moradia e achava que assim continuaria sendo.
Aqui na colônia não temos casas; todos dividem espaços comunitários.
Os amigos que são recém-chegados passam um bom tempo morando no hospital, até que se engajem em alguma atividade. Eu, por exemplo, logo que comecei a frequentar as aulas preparatórias ministradas pelo Irmão Inácio, passei a morar no Centro de Estudos, mas temos outros lugares, todos definidos conforme as atividades.
Irmãos que trabalham e estudam no Centro Tecnológico — que é uma extensão do Centro de Estudos — dormem e se alimentam por lá mesmo. E o mesmo se dá com os irmãos que exercem atividades nos campos da colônia.
Chegando ao meu quarto, lá estava Irmã Margarida, arrumando-o.
— Não precisa se incomodar irmã — falei.
— Não é nenhum incômodo! Faço isso com grande prazer, e suponho que você queira descansar um pouquinho, afinal teve um dia bem agitado e logo mais fará parte de trabalhos demasiado cansativos. Sendo assim, bom será repousar por algum tempo — falou-me ela com enorme doçura e presteza.
— A senhora é muito gentil, Irmã!
— Que é isso, César?! Só faço o meu trabalho, nada mais que isso.
— E é muito humilde também.
Com sorriso espontâneo, ela me advertiu timidamente:
— Se você continuar me elogiando tanto assim, corro um sério risco de me tornar vaidosa.
— Não creio que a senhora se deixe levar por isso. Sabe que os elogios, na verdade, são frutos de minhas sinceras observações.
— Eu agradeço o carinho e você sabe que a recíproca é verdadeira.
— Irmã, posso lhe fazer uma pergunta?
— Claro, meu querido.
— O hospital tem o nome em sua homenagem, não é mesmo?
— Eu creio que sim, este foi um presente que a Irmã Madalena me concedeu, com a graça de Deus, mas o porquê da pergunta César?
— Nada demais — falei, agora me arrumando na cama para descansar —. Eu percebi, quando nos falamos hoje cedo, no jeito encabulado que a Irmã me falou do prédio.
— Encabulada, eu? — disse sorrindo.
— Só um pouquinho.
— Bem, meu querido amigo, vou deixá-lo para que descanse um pouco, espero que tenha boas lembranças.
— Lembranças? — interroguei a mim mesmo.
Quis perscrutar sobre isso, no entanto, já me sentia incontrolavelmente sonolento. De fato, nem me lembro de ter visto a Irmã Margarida sair do quarto.
(*) Bauhaus: ou a Staatliches-Bauhaus (literalmente, casa estatal da construção) foi uma escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha. A Bauhaus foi uma das maiores e mais importantes expressões do que é chamado Modernismo no design e na arquitetura, sendo a primeira escola de design do mundo – N. D.
PRIMEIRA PARTE (Médium Wilton Oliver) Capítulo 1 - Visitas à casa do irmão Hélio
Cap. 5 - Na câmara de miniaturização
Cap. 6 - Preparação para o porvir
Cap. 8 - Oportunidade para recomeço
Cap. 12 - Nos campos da Colônia
Cap. 14 - Influências nefastas
Cap. 15 - Exposição esclarecedora
SEGUNDA PARTE (Médium Rodrigo Felix da Cruz) - Cap. 1 - Notícia feliz
Cap. 4 - Estágio no Hospital Irmã Margarida
Cap. 7 - Laboratório da Memória
Cap. 9 - Primeiras atividades socorristas
Cap. 10 - Visita a François Dupont
Cap. 12 - Grupo de planejamento
Cap. 13 - Implantação do projeto
Cap. 14 - Trabalho em conjunto
Cap. 15 - Comprometimento, esperança e perdão
TERCEIRA PARTE (médiuns Alessandra Aparecida Silva e Rodrigo Felix da Cruz) Cap. 1 - Balanço
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