Allan Kardec, ou Hippolyte Léon Denizard Rivail (Lyon, 3 de outubro de 1804 - Paris, 31 de março de 1869), conhecido como o codificador do Espiritismo, em razão de ele ter copilado e publicado os conceitos básicos da Doutrina Espírita, da qual às vezes se diz Doutrina Kardecista, ou simplesmente Kardecismo. Anteriormente ao seu trabalho espírita, foi um educador, diretor de instituições de ensino, escritor de obras pedagógicas e, dentre outras atividades, tradutor de livros e artigos. A partir de quando passou a se dedicar à doutrina dos Espíritos, adotou o pseudônimo Allan Kardec. Teve como esposa Amélie Gabrielle Boudet, pedagoga e artista plástica, além de devotada colaboradora com a causa espírita. Kardec é o autor de O Livro dos Espíritos e demais Obras Básicas do Espiritismo, reconhecidamente as principais referências doutrinárias espíritas. Também foi o fundador da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, entidade que ele presidiu pelo restante de sua vida, além de criador e editor da Revista Espírita, jornal mensal que lhe serviu como veículo de propaganda e condução do Movimento Espírita, do qual ele naturalmente se tornara o líder, ou — como seus confrades lhe chamavam — o Mestre (Maître, em francês). Abnegado apóstolo do Cristo, cumpriu sua vocação com brilhantismo e dignidade, deixando uma obra profícua e legando à humanidade uma doutrina cujo valor é inestimável, e que, na medida em que se propaga, exalta o trabalho do seu codificador.
Allan Kardec, o codificador do Espiritismo
Rivail nasceu numa tradicional família de ascendentes formados em Magistério e Direito com carreira militar. Seus pais, Jean-Baptiste Antoine Rivail e Jeanne Louise Duhamel, moravam no interior da França, na comuna de Saint-Denis-lès-Bourg, ao lado de Bourg-en-Bresse, capital do departamento de Ain. Seus avós maternos (Benoit Marie Duhamel e Marie Charlotte Bochard) eram de classe nobre da região. O patriarca Duhamel, inclusive, havia sido préfet (espécie de governador) de Ain. Quando Rivail nasceu, porém, a avó Charlotte já era viúva. Os avós paternos de Kardec também já eram falecidos.
Bourg-en-Bresse era um tradicional recanto de férias e passeios da nobreza francesa; pacata e campestre, servia de excelente berço para a sua infância. Contudo, seu nascimento se daria em Lyon, muito provavelmente em função de seus pais buscarem um melhor acompanhamento para o parto, uma vez que Jeanne-Louise já havia perdido um filho com 6 anos (Auguste Claude Joseph François Rivail, 1796-1802) e uma filha com 2 anos (Marie Françoise Charlotte Éloise Rivail, 1799-1801). Para tanto, ela foi instalada numa típica casa de águas minerais, localizada na Rua Sala N° 74, próxima da travessa com a Rue de la Charité, ou Rua da Caridade (palavra bem familiar à obra que mais tarde ele iria empreender como Kardec). Após seu nascimento, mãe e filho voltaram para a morada em Saint-Denis-lès-Bourg, enquanto o pai estava a trabalho em Paris. O pequeno Hippolyte Rivail voltaria a Lyon no seu primeiro aniversário para a cerimônia de batismo, na igreja católica de Saint-Denis de la Croix Rousse, conforme sua certidão de batismo. Ele teve ainda uma irmã mais jovem, Isaure Rivail, nascida dois anos depois dele; a menina, porém, não teve vida longa.
Placa em homenagem a Allan Kardec, filho natural de Lyon, França
Um ano após o nascimento da irmãzinha, estando Hippolyte perto dos três anos de idade, ele assistiu à partida de seu pai rumo a uma campanha militar enviada por Napoleão Bonaparte à península ibérica, de onde não mais voltaria para o antigo lar. A exemplo de muitos soldados desaparecidos nesse conflito, ele foi dado como morto; mais tarde, no entanto, documentos viriam indicar que seu pai viveu na comuna Périgueux, onde faleceu em 1834, em estado de extrema pobreza, sem que se saiba ainda a causa de ele não ter retornado para sua família.
Com a presumida morte do pai, o jovem Hippolyte foi morar na casa da avó materna, em Bourg-en-Bresse, junto com mãe e o tio (François Duhamel), lá onde o garoto vai passar a infância, até sua transferência para Yverdon-les-Bains na Suíça, para fazer seus estudos na conceituada escola de Pestalozzi.
Instituto Pestalozzi, na Suíça
Foi educado familiarmente dentro do catolicismo, como era comum na França de então; porém, conheceu bem as ideias protestantes durante os estudos, por ocasião de sua estadia na Suíça — país onde o culto predominante era o das igrejas reformistas. Essa diversidade de conceitos religiosos e sua inclinação para a filosofia e o conhecimento científico certamente contribuíram para que ele mantivesse uma postura moderada em relação às questões de fé, longe dos extremismos entre católicos e protestantes, tão comuns em seu tempo.
O jovem Rivail absorveu bem o método educacional revolucionário do Prof. Pestalozzi, que consiste na formação integral do cidadão, pelos princípios do conhecimento e da moral — método esse que se tornaria a base das reformas pedagógicas modernas, influenciando a modernidade das escolas europeias, notadamente na França e Alemanha. Em 1822, tornando-se bacharel em Ciências e Letras, aos dezoitos anos, e retornando ao seu país para atuar na área pedagógica, Rivail iria se tornar um dos mais eminentes propagadores do método de seu mestre.
O jovem Hippolyte Rivail (Allan Kardec)
De volta à França, no final de 1822, estabeleceu-se em Paris com sua mãe e eventualmente com o irmão dela, o tio François. Na Cidade Luz, fez carreira como professor de diversas disciplinas: seguindo o método pestalozziano, fundou o Instituto Técnico Rivail, na Rua dos Sèvres, em sociedade com o tio, categorizando o seu ensino através de um método educacional voltado para a aplicação prática das atividades profissionais. Esse Instituto foi fechado a partir de quando o seu tio e sócio — com dificuldades financeiras, devido sua inclinação à jogatina — propôs a venda do estabelecimento para então resgatar sua parte no investimento; no decorrer dessas negociações com seu tio, o prof. Rivail ainda seria lesado na parte que lhe cabia por direito.
Ganhou certo destaque especialmente por suas publicações pedagógicas, pelas quais propunha modernos sistemas de aprendizado — o que lhe conferiu vários prêmios e a entrada em importantes sociedades acadêmicas europeias.
Casou-se em 6 de fevereiro de 1832 com Amélie Gabrielle Boudet, também pedagoga, com quem o prof. Rivail mobilizou campanhas para uma maior democratização da escola. Juntos, abriram classes gratuitas para o ensino de várias matérias escolares.
Arte representando o casal Kardec
Rivail acumulou diversos diplomas e premiações, tais como:
Alguns dos certificados do Prof. Rivail (Allan Kardec)
A seguir, uma lista com as principais publicações didáticas de Rivail:
Obra didática do Prof. Rivail (Allan Kardec)
Além de professor e diretor de instituições educacionais, e ainda em paralelo com suas publicações pedagógicas, Rivail atuou em outras atividades profissionais. No ano de 1839 ele aventurou-se num negócio de “banco de transações” (para fomentar empreendimentos comerciais e industriais através da troca de produtos) em sociedade com Maurice Lachâtre (que mais tarde também seria um dos protagonistas no episódio do Auto de Fé de Barcelona, em que Lachâtre seria o destinatário dos livros enviados por Kardec, livros esses interceptados pelo bispo daquela localidade, na Espanha, e encaminhados para a fogueira da Inquisição). Para promover aquele banco de trocas, Rivail e Lachâtre ainda publicaram um periódico (Journal de la Banque des Échanges). O negócio sobreviveu até pelo menos 1853, conforme anúncio no jornal Le Tintamarre de 25 de dezembro daquele ano.
Também trabalhou como tesoureiro e contador em teatros. De um deles, o Théatre des Délassements-Comiques, chegou até a ser sócio, com Émile Taigny, em 1852. Fato interessante sobre isso é que, para tais fins, ele assinava com o sobrenome Denizard sobreposto a Rivail — provavelmente para distinguir suas atividades conforme os ramos de atuação, separando seu trabalho de educador dos serviços contábeis.
O prof. Rivail já era quinquagenário quando tomou conhecimento da série de manifestações espirituais que resultou no fenômeno das mesas girantes e do movimento americano conhecido como Espiritualismo Moderno. Conforme ele próprio descreve nas anotações publicadas em Obras Póstumas (2ª parte: ‘A minha primeira iniciação no Espiritismo’), em 1854, um amigo (Sr. Fortier), cuidou de lhe introduzir no assunto; por sua vez, Rivail não ficou entusiasmado, supondo mesmo que tudo se tratasse de algum efeito de Magnetismo Animal, que ele estudava desde longa data.
Um ano seguinte, no entanto, diante da febre crescente das manifestações e da variedade dos fenômenos, somadas à insistência de outro amigo (Sr. Carlotti) Rivail vai assistir a uma sessão experimental na casa de uma sonâmbula (Sra. Plainemaison) pela qual observa a excentricidade daqueles efeitos, remetendo-o à busca por uma explicação científica para tais fenômenos, busca essa que começou sistematicamente nas reuniões mediúnicas realizadas semanalmente na residência da família Baudin, cujas médiuns eram as irmãs Baudin (Caroline e Pélagie). Ao mesmo tempo, frequentou outros grupos de evocação espiritual com o propósito de comparar e estudar as manifestações, variadas, mas todas evidenciando a existência de inteligências extracorpóreas — Espíritos — como a causa e agente primordial daqueles extraordinários fenômenos.
Fotografia de Allan Kardec
Nessas reuniões, através dos médiuns que se emprestavam às sessões, ele submetia aos seres espirituais questões previamente formuladas sobre conhecimentos gerais, a natureza espiritual, o mecanismo daquele intercâmbio (Mediunidade) e as consequências dessas revelações, posto que implicavam em novos desdobramentos de ordem científica, filosófica e religiosa.
Já tendo uma considerável compreensão da existência dos Espíritos e do mundo espiritual, do processo de interação natural entre o plano invisível e a nossa dimensão física, bem como das múltiplas existências corporais (processo de reencarnação), ele então recebeu do Espírito Hahnemann (médico idealizador da Homeopatia) a revelação da missão para qual ele havia se inscrito em seu planejamento reencarnatório: codificar os ensinamentos daqueles Espíritos amigos que o guiavam e então tornar pública a nova doutrina — o Espiritismo. Noutra sessão, em outro lugar e por outra médium, Kardec vai se inteirar de tais planos e recebe a confirmação da sua missão, agora pelo Espírito Verdade:
Para tal propósito, além do concurso da Sra. Plainemaison e das irmãs Baudin, Kardec contou com experimentações de diversos médiuns, dentre os quais, especialmente Célina Japhet e Ermance Dufaux.
Entre os tantos Espíritos que o auxiliariam, figuravam-se Sócrates, Santo Agostinho, São Luís, Fénelon, Erasto, Lacordaire e, em particular, aquele que se denominou Espírito Verdade e que mais tarde iria se revelar ser seu guia espiritual.
Abraçando a missão, o professor Rivail passou então a assinar como Allan Kardec — nome que, segundo revelação espiritual, ele próprio já teria usado em uma antiga reencarnação, ou duas delas. Reportando isso, o jornal ingles The Spiritualist publicou:
Na contramão dessa informação, sobre uma possível junção de dois nomes provindos de diferentes reencarnações, várias fontes convergem para uma só origem do dito cognome: “Allan Kardec” teria sido o nome próprio de Rivail numa determinada vida passada. Em sua obra Biografia de Allan Kardec, Henri Sausse conta que numa certa sessão mediúnica, um Espírito familiar (Zéfiro) apresentou-se a Rivail revelando que eles eram conhecidos numa reencarnação nos tempos dos druidas (espécie de sacerdotes e instrutores entre os povos celtas) nas Gálias (província da qual se originou a moderna França) quando Rivail então se chamava Allan Kardec. Dissertando sobre a produção de O Livro dos Espíritos, Sausse acrescenta:
Na mesma obra, Sausse ainda ratifica: “Assim também se deu a respeito do seu pseudônimo; várias comunicações procedentes dos mais diversos pontos vieram constatar e corroborar a primeira comunicação obtida a esse respeito.”
O filósofo Léon Denis, grande apóstolo kardecista, também reitera essa mesma procedência do cognome; em sua obra O Mundo Invisível e a Guerra, capítulo VI, ele narra: “Foi nessas profundas fontes que Allan Kardec ilustrara seu espírito; foi com meios idênticos que ele viveu outrora. Não na Bretanha, talvez, mas antes na Escócia, segundo a indicação de seus guias. [...] Kardec ali aprendeu a filosofia dos Druidas; preparava-se no estudo e na meditação para as grandes empresas futuras. [...] Até o nome de Allan Kardec, que escolheu, até este dólmen erigido no seu túmulo por sua expressa vontade, tudo, digo eu, lembra o homem do visco do carvalho, que voltou a esta Gália para despertar a fé extinta e fazer reviver nas almas o sentimento da imortalidade.” Depois, na obra O Gênio Céltico e o Mundo Invisível (cap. VIII), Léon Denis reproduz a transcrição de uma mensagem mediúnica atribuída ao próprio Kardec, então confessando realmente ter sido um druida: “Os druidas deixaram na alma das gerações primitivas, que habitaram o vosso solo, uma centelha que ficou latente no fundo de cada consciência. Isto faz com que toda a esperança não esteja perdida para reavivar uma chama que adormece entre alguns de vós. Temos como missão agrupar os verdadeiros celtas que são a própria essência da França. Posso falar disso, pois que vivi na Bretanha, fui druida em Huelgoat. Mais tarde, por uma graça insigne, senti as forças emanadas do círculo superior e minha fé tornou-se viva e forte, ela me seguiu nas minhas existências ulteriores, até aquela em que vós me conhecestes.”
Numa obra de 1867, Dictionnaire des Pseudonymes [Dicionário de Pseudônimos], o autor Georges d'Heilly registra o item “Allan Kardec”, explicando que sua significação lhe havia sido dada pelo próprio Rivail:
No segundo volume da trilogia biográfica Allan Kardec, de Zêus Wantuil e Francisco, Thiesen encontramos a transcrição de um manuscrito, escrito pelo próprio codificador espírita, correspondente a uma carta endereçada a um amigo (Sr. Tiedmen), manuscrito esse então em posse do Dr. Canuto Abreu — cujo histórico acervo mais tarde viria compor o Projeto Allan Kardec da UFJF — e do qual extraímos o seguinte parágrafo:
Assinatura de Allan Kardec
Porém, antes que este pseudônimo viesse a se estabelecer, há sugestões historiográficas que o pioneiro espírita tivesse tido outro apelido no meio espiritualista. Antes do lançamento oficial de O Livro dos Espíritos, um prospecto dessa obra já havia entrado em circulação sob o título um pouco diferente: Les Livres des Esprits (Os Livros dos Espíritos, e com um sugestivo subtítulo: Principes de la doctrine spirite écrits sous la dictés e par ordre des esprits supérieurs (Princípios da doutrina espírita escritos sob o ditado e por ordem dos espíritos superiores). No Journal du Magnétisme dirigido pelo Barão du Potet, edição de 25 de fevereiro de 1857, anunciava-se que o exemplar desta obra, impresso em formato in-8, estava à venda por 3 francos na rua Jacob n° 35, Paris, na casa de Villarius (na verdade o endereço correspondia à tipografia de Pierre Bascle); a nota do jornal não elucida se esse “prospecto” tinha sido impresso anonimamente ou se esse “Villarius” seria o autor.
Temos então novas evidências deste suposto outro pseudônimo: no artigo ‘Un nouveau révélateur’ (Um novo revelador) publicado no jornal La Pensée Nouvelle de 9 de junho de 1867, seu irônico articulista A. S. Morin comenta: “É a uma revelação semelhante que o Sr. Kardec deve o seu nome atual, antes deu à luz a vários outros: foi Denizot (sic), Rivail, Villarius...” A propósito, o periódico Le Dimanche, edição de 15 de novembro de 1857, página 2, faz menção a Allan Kardec como sendo “também chamado Valérius, outras vezes R...” — possivelmente uma confusão do jornal quanta à grafia desse Valérius, querendo referir-se a Villarius; quanto ao R..., está patente se tratar de Rivail.
É interessante observar a proximidade dos caracteres “VILLARIUS” com “RIVAIL”; não está formado aqui um anagrama perfeito (estão sobrando as letras “U”, “S” e o “L” repetido), mas talvez o professor Rivail quisesse de alguma forma sinalizar uma reorganização dos caracteres do seu principal sobrenome na confecção de um cognome.
Portanto, num cenário ainda hipotético — conquanto bem plausível — Rivail adota o pseudônimo “Villarius” e começa a distribuição de um volume experimental para uma obra que desde há um bom tempo já planejava publicar; no transcurso disso, sendo-lhe revelado detalhes de vivências anteriores, ele então opta por passar a assinar O Livro dos Espíritos com o pseudônimo “Allan Kardec”. dadas as revelações de suas vivências anteriores.
Após dois anos de intensas pesquisas e consultas espirituais, colhendo e comparando as revelações e ensinamentos, o prof. Rivail reuniu os primeiros fundamentos da nova doutrina, que ele intitulou Espiritismo — neologismo que adotara, assim como os seus adjetivos: espírita e espiritista. A compilação desses fundamentos e a apresentação da nova doutrina foram oficialmente oferecidas ao público em 18 de abril de 1857 através da sua obra elementar: O Livro dos Espíritos.
Depois desse lançamento alcançar grande repercussão, na França e no exterior, Kardec prosseguiu com suas pesquisas, ampliando contatos com pesquisadores, médiuns, divulgadores e simpatizantes da doutrina e do movimento espiritualista em geral, levando-o ao bem-sucedido projeto de uma publicação mensal: a Revista Espírita, de subtítulo Jornal de Estudos Psicológicos, cuja primeira edição foi lançada em 1 de janeiro de 1858.
Em 1 de abril daquele mesmo ano, ele fundou a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), que muitos consideram o primeiro centro espírita oficialmente constituído no mundo, e que ele presidiu até a sua desencarnação.
Além de cuidar mensalmente da montagem da sua revista — o que se estendeu até sua morte, em 1869) — Kardec continuou trabalhando para publicar novas obras, compondo assim o que chamamos de obras básicas da codificação espírita. Em 1858 ele publica um pequeno manual da mediunidade, intitulado Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas; no ano seguinte é a vez do opúsculo contendo o resumo da doutrina: opúsculo contendo o resumo da doutrina: O que é o Espiritismo. Logo mais, em 1860, lançou a segunda edição de O Livro dos Espíritos, que, por sua expressiva ampliação e reestruturação dos itens, caracteriza-a quase que como uma nova obra, solidificando os princípios doutrinários do ensino dos Espíritos.
Em 1861 veio O Livro dos Médiuns, subintitulado Guia dos Médiuns e Evocadores. Como o próprio título expressa, é um tratado sobre a faculdade mediúnica, o papel dos médiuns, das sessões espíritas e as consequências da mediunidade para todos os envolvidos — um desdobramento daquele opúsculo Instrução Prática.
Em abril de 1864, o pioneiro espírita lança o livro Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, que na segunda edição ele iria renomear para O Evangelho segundo o Espiritismo. Nesta obra, o codificador faz uma releitura dos ensinamentos morais de Jesus, sob a ótica do Espiritismo, complementada por instruções de vários Espíritos.
A obra seguinte foi O Céu e o Inferno, ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo, publicada em 1 de agosto de 1865. Nela, o leitor encontra as explanações acerca do destino da alma, após a desencarnação, bem como o conceito espírita para as tradicionais teorias do céu, do inferno, do purgatório, das penas eternas e das implicações dos atos do encarnado para a vida espiritual. Traz, além disso, uma série de mensagens de Espíritos e seus exemplos acerca da condição da existência na erraticidade.
A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo veio em 6 de janeiro de 1868. O seu conteúdo básico é formado pelos conceitos espíritas no tocante ao lado científico da revelação, da formação do mundo, da vida orgânica e dos elementos gerais do Universo e seus efeitos, pelos quais, Kardec analisa também as faculdades espirituais de Jesus na realização do que se convencionou chamar milagres. Além disso, o livro anuncia a grande transformação pela qual a Terra passa e sua repercussão para seus habitantes — encarnados e desencarnados —, processo esse chamado de transição planetária.
Desde quando assumiu sua missão espírita, Allan Kardec dedicou-se quase que interinamente a essa causa. Sem filhos, apoiado pela esposa, despendeu seu tempo essencialmente compondo os textos para seus livros e para a Revista Espírita, administrando a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, além de empreender viagens em visita a entidades afins para o desenvolvimento do Espiritismo.
Sua dedicação a esta missão era tamanha que até chegou a ser advertido várias vezes pela espiritualidade, por exemplo, em uma comunicação recebida em 23 de abril de 1866, para que não descuidasse do seu descanso necessário, ainda que os trabalhos doutrinários se fizessem urgentes, inclusive porque seus guias também já tinham lhe predito que o complemento da tarefa doutrinária a que se comprometera necessariamente ficaria para uma reencarnação, em breve.
Em seu apostolado à frente da nova doutrina, Kardec sempre cumpriu as exigências legais do governo francês, isentando-se de polêmicas políticas e evitando confronto com autoridades religiosas. Muitas vezes atacado pelos antipáticos à causa espírita, especialmente eclesiásticos católicos, limitou-se a tecnicamente refutar as teses contrárias ao Espiritismo, fazendo uso da publicação mensal da Revista Espírita, e ignorando as acusações pessoais. Aos confrades que lhe rendiam sincera admiração e votos de bom êxito no serviço doutrinário, ele devolvia uma mensagem de encorajamento:
Kardec desencarnou em Paris, a 31 de março de 1869, aos 64 anos de idade, vítima de uma ruptura de um aneurisma, justamente em meio aos preparativos para a mudança, prevista para o dia seguinte, do escritório da Revista Espírita e sede da Livraria Espírita, cujas novas instalações ficariam na Rua de Lille, N° 7.
O velório de seu corpo foi cortejado por grande multidão, seguindo para o cemitério de Montmartre. Aos pés do túmulo, no ato do sepultamento, seu amigo e renomado astrônomo Camille Flammarion lhe devotou um honorável discurso.
Túmulo de Allan Kardec no Cemitério do Père-Lachaise
No ano seguinte, a 31 de março de 1870, seus restos mortais foram transferidos para o cemitério Pére-Lachaise, onde foi erguido um dólmen no estilo druídico e se lê uma de suas máximas: “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar: tal é a lei.”.
A título de um balanço pessoal de sua obra, em um manuscrito intitulado "Fora da Caridade não há Salvação", encontrado por sua viúva, após o seu retorno à pátria espiritual, ele exprime:
Às vésperas de sua morte, Kardec estava trabalhando na elaboração de um projeto para a condução do Movimento Espírita pensando exatamente na sua sucessão, neste caso, não por outra pessoa, mas por uma entidade, uma sociedade sem fim lucrativo que, dentre outras atribuições, continuasse editando a Revista Espírita, reeditasse seus livros e administrasse a Livraria Espírita que estava por ser inaugurada. (Ver ‘Constituição transitória do Espiritismo’ na Revista Espírita de dezembro de 1868). Atenta aos desígnios do esposo, a devotada Viúva Kardec cuidou para efetivar tal plano naquele mesmo ano de 1869 e então instituiu a Sociedade Anônima Espírita, da qual ela própria assumiria a direção geral, embora, com o avançar da sua idade, as funções práticas foram sendo delegadas a terceiros; dois anos mais tarde, essa direção ficaria concentrada na pessoa de Pierre-Gaëtan Leymarie — membro da Sociedade Espírita de Paris e até então homem da confiança da casa de Kardec.
Fui justamente Leymarie quem cuidou para que mais uma obra de Allan Kardec fosse publicada, em 1890, onze anos após sua desencarnação: Obras Póstumas, reunindo artigos diversos sobre a doutrina, além de anotações do seu diário pessoal, pelo qual narra pormenorizadamente desde a sua iniciação aos estudos daqueles fenômenos extraordinários até os seus planos para o desenvolvimento do Espiritismo.
A tão aguardada primeira comunicação do Espírito Allan Kardec se deu quase três meses depois de sua passagem, exatamente em 20 de junho de 1869, publicada na Revista Espírita daquele mês sob o título ‘Marcha do Progresso’. Nela, nada relacionado à sua condição particular, mas um teor essencialmente doutrinário, a comprovação pessoal da doutrina da evolução e da pluralidade dos mundos habitados, além de uma exortação aos confrades: “Sejam pioneiros perseverantes e infatigáveis!... Se lhes chamarem de loucos como o fizeram a Salomão de Caus, se lhes repelirem como Fulton, marcham sempre, porque o tempo, esse juiz supremo, saberá tirar das trevas os que alimentam o farol que deve, um dia, iluminar a Humanidade inteira.”
No mundo dos Espíritos, Kardec isentou-se de dar comandos aos seus continuadores, deixando a eles o julgamento de suas intenções, limitando-se a “apreciar os resultados”, como ele diz na comunicação obtida em 14 de setembro daquele mesmo ano, publicada no periódico kardecista como uma dissertação: ‘O Espiritismo e a literatura contemporânea’. Esse distanciamento foi compreendido pelos seus confrades como uma circunstância natural em razão do prenúncio feito pelo seu guia espiritual (Espírito Verdade) de que ele deveria retornar à Terra muito em breve, tempo esse que o próprio Kardec calculou entre o final daquele século XIX e o início do século XX — especulação essa que até hoje tem sido objeto de controvérsia, sobre se de fato ele reencarnou e, em caso afirmativo, sobre quem ele teria sido nessa nova vivência carnal).
Após a desencarnação de Madame Kardec, em janeiro de 1883, o patrimônio e a continuação dos projetos espíritas idealizados pelo codificador se perderiam em meio a disputas diversas. Através da brochura intitulada Beaucoup de Lumière [Muita Luz], Berthe Fropo — uma amiga íntima do casal Kardec — denunciou o que ela considerou como desvios doutrinários e administrativos de Pierre-Gaëtan Leymarie à frente da Sociedade Anônima Espírita; dentre esses desvios apontados, a Revista Espírita estaria sendo submetida às mais estranhas concepções e ideologias espiritualistas e místicas, por exemplo, o Roustainguismo e o Teosofismo. Na realidade, ainda segundo Madame Fropo, os desvios de conduta de Leymarie já haviam começado ainda com Madame Kardec em vida, tanto que o Espírito de Kardec, em sessões na presença da própria Amélie Boudet, viera cuidar de orientá-la, junto com seus amigos Gabriel Delanne e a mesma Berthe Fropo, para a fundação de uma nova instituição — a União Espírita Francesa — e um novo periódico espírita, que seria intitulado O Espiritismo [Le Spiritisme], a fim de representar os verdadeiros ideais kardecistas.
Leymarie se defendeu das acusações de Fropo através da Revista Espírita, por ele dirigida; contudo, os cismas entre os confrades se estabeleceram e a propagação da doutrina ficou bastante prejudicada. Por fim, a Sociedade Anônima Espírita foi liquidada e o patrimônio do casal Kardec, não aplicado em favor da causa, foi requerido judicialmente por parentes distantes.
Allan Kardec, o codificador espírita
Fora a questão dos pseudônimos, o próprio nome civil de Allan Kardec por vezes aparece grafado de diferentes maneiras, com variações nos prenomes Hippolyte (Hipolite, Hypolite, Hippolyte...) e Denizard (Denisard, Denizart...), além da ordem dos prenomes. Essas divergências implicaram inclusive no processo de sua sucessão patrimonial em favor da Viúva Kardec.
No seu testamento, datado de 24 de abril de 1846 — pelo qual ele legava a esposa sua herdeira universal — Kardec assina como “Hypolite-Léon Denizard Rivail”, em sintonia com a forma simplificada “H.L.D. Rivail” que comumente usava nas obras didáticas; essa grafia, no entanto, diverge com seu nome de batismo: “Denisard Hypolite Léon Rivail”, também diferente da sua certidão de casamento: “Hyppolite Léon Denizard Rivail”, e ainda do atestado de seu óbito: “Léon Hippolyte Denisart Rivail”.
Diante de tal disparidade, a fim de processar os direitos de herança, o Poder Judiciário francês precisou despachar um ofício determinando o legítimo nome civil de Kardec, o que foi feito em 1 de maio de 1869, quando ficou definitiva e oficialmente declarado que o seu verdadeiro nome era “Denisard Hippolyte Léon Rivail”.
Apesar da força legal desta sentença, optamos por grafar o nome civil de Kardec pela disposição à qual o mesmo se inclinara a usar: “Hippolyte Léon Denizard Rivail”, em respeito à forma sugerida de sua preferência, como consta no verbete ‘Allan Kardec’ no Novo Dicionário Universal (Nouveau Dictionnaire Universal) de Maurice Lachâtre, para o qual o próprio Kardec contribuiu, com o detalhe por nossa conta: a exclusão de qualquer traço entre os prenomes.
O legado de Kardec à humanidade é inestimável e crescente. À medida que o Espiritismo se espraia pelo mundo e que a validade dos conceitos espíritas é corroborada pelas evidências, a memorável obra do codificador se robustece, embora ainda muito aquém de seu merecimento.
Parte desse reconhecimento bem pode ser observado pelo esforço de pesquisadores diversos em recuperar a obra kardequiana a partir de documentos originais que começaram a ser divulgados com o compartilhamento da informação via internet (a exemplo do site Gallica, da Biblioteca Nacional da França) e de iniciativas como a do Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais, que está reunindo e disponibilizando em seu site oficial coleções de fontes primárias, como o acervo de manuscritos coletados pelo memorável pesquisador espírita Canuto Abreu e do Museu Virtual do Espiritismo.
Ver: Projeto Allan Kardec.
Projeto Allan Kardec da UFJF
O amigo e astrônomo Camille Flammarion denominou o mestre espírita como “O bom-senso encarnado” (em discurso durante o sepultamento do corpo de Kardec).
A amiga e confrade inglesa Anna Blackwell, tradutora pioneira da obra kardequiana para o inglês, assim o descreveu:
O pesquisador espírita Canuto Abreu também nos transcreve os traços físicos do Codificador em meio à narração da reunião fraterna, ocorrida na casa dos Kardec em 18 de abril de 1857, para comemorar com os amigos mais próximos o lançamento de O Livro dos Espíritos:
“De estatura meã, apenas 165 centímetros, e constituição delicada, embora saudável e resistente, o Professor Rivail tinha o rosto sempre pálido, chupado, de zigomas salientes e pele sardenta, castigada de rugas e verrugas. Fronte vertical comprida e larga, arredondada ao alto, erguida sobre arcadas orbitárias proeminentes, com sobrancelhas abundantes e castanhas. Cabelos lisos e grisalhos, ralos por toda a parte, falhos atrás (onde alguns fios mal encobriam a larga coroa calva da madureza), repartidos, na frente, da esquerda para a direita, sem topete, confundidos, nos temporais, com as barbas grisalhas e aparadas que lhe desciam até o lóbulo das orelhas e cobriam, na nuca, o colarinho duro, de pontas coladas ao queixo. Olhos pequenos e afundados, com olheiras e pápulas. Nariz grande, ligeiramente acavaletado perto dos olhos, com largas narinas, entre rictos arqueados e austeros. Bigodes rarefeitos, aparados à borda do lábio, quase todo branco. Para triangular sob o beiço, disfarçando uma pinta cabeluda. Semblante severo quando estudava ou magnetizava, mas cheio de vivacidade amena e sedutora quando ensinava ou palestrava.
“O que nele mais impressionava era o olhar estranho e misterioso, cativante pela brandura das pupilas pardas, autoritário pela penetração a fundo na alma do interlocutor. Pousava sobre o ouvinte como suave farol e não se desviava abstrato para o vago senão quando meditava, a sós. E o que mais personalidade lhe dava era a voz, clara e firme, de tonalidade agradável e oracional, que podia escalar agradavelmente desde o murmúrio acariciante até as explosões da eloquência parlamentar.
“Sua gesticulação era sóbria, educada. Quando distraído, a ler ou a pensar, cofiava os ‘favoris’. Quando ouvia uma pessoa, enfiava o polegar direito no espaço entre dois botões do colete, a fim de não aparentar impaciência e, ao contrário, convencer de sua tolerância e atenção. Conversando com discípulos ou amigos íntimos, apunha algumas vezes a destra ao ombro do ouvinte, num gesto de familiaridade. Mantinha rigorosa etiqueta social diante das damas.”
Canuto Abreu
O Livro dos Espíritos e sua Tradição Histórica e Lendária - Cap. 6
Allan Kardec, o codificador espírita
De acordo com o médium Divaldo Franco, valendo-se de uma psicografia assinada pelo Espírito Léon Denis, durante o 4° Congresso Mundial de Espiritismo (Paris, 2004), uma das reencarnações anteriores de Allan Kardec havia sido Jan Huss (1369-1415) filósofo e reformador religioso do Reino da Boémia (atual República Checa), precursor da Reforma Protestante, considerado herege e queimado vivo pela Inquisição Católica.
Várias outras suposições e até autoproclamações de reencarnação de Kardec têm surgido ao longo dos tempos, sem que nenhuma foi levada a sério pelo movimento espírita, exceto a tese que defende que o pioneiro espírita retornou à vida carnal como Chico Xavier; tal tese tem sido defendida por diversos confrades espíritas e abordada em várias obras, dentre as quais Chico é Kardec, ditada pelo Espírito de Inácio Ferreira, pela psicografia de Carlos A. Baccelli; ao mesmo tempo, porém, tal associação é rechaçada por outros tantos, de modo que se configura como uma das mais recorrentes polêmicas do movimento espírita.
No filme documentário O Espiritismo - De Kardec aos dias de hoje, produzido pela FEB em 1995, Allan Kardec é interpretado pelo ator Ednei Giovenazzi.
A trajetória biográfica do Codificador é parte do conteúdo básico do videodocumentário Roteiro Histórico Espírita em Paris, produzido pelo Portal Luz Espírita em 2017.
Em 2019, por ocasião do 150° aniversário de sua desencarnação, o codificador ganhou um filme biográfico: Kardec: a história por trás do nome, dirigido por Wagner de Assis e produzido pela Conspiração Filmes. Seu papel foi interpretado pelo ator Leonardo Medeiros.
Cartas do filme "Kardec: a história por trás do nome"
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