Charlatanismo, ou charlatanice, é a prática de exploração da credulidade pública associada à venda, propaganda ou prenúncio de uma pretensa cura por vias fraudulentas, comumente descrito como exercício ilegal da medicina, curandeirismo; aquele que o pratica é chamado de charlatão. A exemplo do que ocorre em muitas nações, charlatanismo é tipificado no artigo 283 do Código Penal Brasileiro como crime contra a incolumidade pública. Na codificação espírita, Allan Kardec tratou dos charlatões como aqueles que simulam capacidades mediúnicas para produzir curas espirituais ou magnéticas, e por extensão, todos os falsos médiuns, embusteiros, prestidigitadores e mistificadores, naturalmente inclinados ao interesse material.
A palavra charlatanismo que deriva do italiano ciarlatano, que seria, segundo alguns, uma corruptela do termo cerretano (ou seja, aquele que é natural de ou oriundo de Cerreto di Spoleto, vila situada na Umbria, Itália) e segundo a maioria, derivada de ciarla, ciarlare: falar, conversar; neste contexto, equivalente em português a “lábia”, palavrório astucioso destinado a ludibriar pela persuasão. Desta forma, em um sentido amplo, o charlatão é um “parlapatão”, um enganador.
Num sentido mais específico, esse vocábulo ganhou a acepção de curandeiro, isto é, falso curador, associado à imagem pejorativa de alguém que explora a fé pública com a promessa de terapias especiais mediante beberagens ou outras supostas substâncias medicinais, ou mesmo por procedimentos como benzimentos, rezas e afins.
Na codificação espírita, a prática do charlatanismo é vista sempre negativamente, evidenciada como um dos inimigos da mediunidade e, por conseguinte, do Espiritismo.
Em O Livro dos Médiuns, Allan Kardec analisa sistematicamente o charlatanismo em duas ocasiões específicas. Na primeira, capítulo IV da Primeira Parte: ‘Os sistemas’,, ele põe em questão a tese da negação dos opositores do Doutrina Espírita que atribuem todo e qualquer fenômeno espiritual à teoria do charlatanismo:
A partir de então, o autor vai considerar a possibilidade e até mesmo a naturalidade do oportunismo dos homens aproveitadores e trapaceiros para se passarem por médiuns e explorarem indevidamente a ideia espírita. E, como recurso preventivo contra esses exploradores, ele vai oferecer um critério elementar pelo qual comumente se pode distinguir os falsos dos autênticos médiuns: o interesse material.
Mais adiante, na mesma obra, o codificador espírita dedica um capítulo inteiro à questão (capítulo XXVIII da Segunda Parte: ‘Charlatanismo e embuste’) e aí destaca o comportamento dos Espíritos em relação aos exploradores da espiritualidade:
Em seu tempo, Allan Kardec alertou a respeito e combateu veementemente a mistificação e a exploração do Espiritismo, salientando a categoria mais visada pelos aproveitadores: os fenômenos físicos.
Através da Revista Espírita, podemos constatar como eram frequentes os flagras de fraudes de exploradores da mediunidade e os escândalos provocados por tais espetáculos — muito utilizados pelos detratores do Espiritismo para desqualificá-lo.
Pelo histórico reportado pelo codificador, essas fraudes partiam de típicos ilusionistas — que, não tendo aptidões mediúnicas, com os mais ardilosos artifícios, simulavam manifestações como materialização, levitação e movimentação de objetos — mas também se davam com pessoas que, embora tendo verdadeiramente faculdades mediúnicas para certos tipos de manifestações, almejavam produzir outras classes de fenômenos, na ilusão de se tornarem mais notados.
A historiografia registra diversos casos emblemáticos de escândalos envolvendo supostas fraudes, então bastante explorados para denegrir a credibilidade popular acerca da mediunidade e da Doutrina Espírita. O primeiro caso de certa gravidade foi o depoimento de Kate Fox, uma das famosas irmãs Fox, pelo qual ela teria confessado a farsa no histórico caso de Hydesville — descrito como o marco do Espiritualismo Moderno, movimento precursor do Espiritismo — embora, pouco tempo depois, ela mesma desmentiu essa confissão; entretanto, o estrago já estava feito.
Instrumentos usados em fenômenos fraudulentos
Também causou muitas polêmicas a famosa dupla formada por Ira Erastus e William Henry, conhecida como Irmãos Davenport. Pelo que se pôde apurar, eles eram realmente dotados de faculdades extrassensoriais, contudo, estiveram envolvidos em escândalos devido supostas descobertas de fraudes.
No tocante aos integrantes do movimento espírita propriamente dito, o episódio mais retumbante foi o conhecido Processo dos espíritas, envolvendo adulteração de fotografias publicadas na Revista Espírita (então editada por Pierre-Gäetan Leymarie), culminando numa ação penal na corte de Paris em 16 de junho de 1875. O inquérito apontou crime de adulteração em algumas imagens fraudulentas cuja montagem propunha a aparição de Espíritos desencarnados, sobreposta ao retrato de parentes e amigos que pousavam para os fotógrafos charlatães. Na sentença, foram condenados tanto Leymarie, diretor da revista, quanto os retratistas Alfred Henri Firman e Édouard Buguet.
Fraude no retrato de P.-G. Leymarie (à esquerda) ao lado do Sr. C., sobre o qual aparece a imagem sobreposta de um susto Espírito
Fonte: RetroNews
Além dos exploradores interessados na fama e em recursos materiais, também incluímos nesse rol de charlatões e embusteiros aqueles que, por melhor das intenções, simulam ou corroboram falsos ou duvidosos fenômenos a fim de evidenciar os valores espirituais e até os conceitos espíritas — como se a espiritualidade ou o Espiritismo carecesse desses artifícios. Estes incorrem no erro clássico de supor que a consistência da Doutrina Espírita esteja na espetacularização dos fenômenos sobrenaturais e que as manifestações físicas sejam as melhores motivações para o convencimento e reforma íntima, enquanto que essa consistência reside na essência filosófica. Esses bem-intencionados, no entanto, assemelham-se mais à classe dos espíritas exaltados, na descrição kardequiana:
Precavido contra o perigo da mistificação e do charlatanismo, Allan Kardec era rigoroso na admissão e manutenção dos médiuns na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Num exemplo clássico, ele conta da vez que um “conhecido intelectual” veio lhe oferecer seus dotes mediúnicos; então Kardec narra seu procedimento para com o suposto médium, autodeclarado “excelente escrevente intuitivo”:
A mesma firmeza era aplicada na manutenção dos colaboradores admitidos, por melhor que fossem seus préstimos. Em razão de suspeitas de mistificações e outros desvios, a SPEE excluiu de seus quatros notáveis medianeiros de outrora; este foi o caso, por exemplo, da Alis d’Ambel, médium predileto de Erasto (um dos mais ativos Espíritos colaboradores da codificação kardequiana). Perscrutando sobre os rumores de possíveis mistificações de D’Ambel, Kardec é alertado sobre a leviandade daquele médium durante uma sessão sonambúlica em 8 de outubro de 1865:
Como consequência, Alis d’Ambel deixou a SPEE e se propôs a criar uma filosofia nova, o que o levaria à ruína e ao suicídio.
Com efeito, a firmeza na filtragem dentro dos grupos espíritas é colocada como regra para a harmonia e o sucesso das reuniões:
Se o que sistematicamente motiva a fraude é a ilusão de algum lucro financeiro ou qualquer tipo de vantagem pessoal, a contrapartida é a virtude da abnegação — que também serve como parâmetro para reconhecermos as qualidades do médium, como bem acentuou Allan Kardec:
© 2014 - Todos os Direitos Reservados à Fraternidade Luz Espírita