Amélie Gabrielle Boudet (Thiais, França 22 de novembro de 1795 - Paris, 21 de janeiro de 1883) foi a esposa de Allan Kardec e sua fiel companheira no trabalho de codificação e propagação do Espiritismo. Formada em Letras e em Belas Artes, atuou ainda como professora e artista plástica. Após a desencarnação do codificador espírita, mantendo-se coerente com os seus princípios fundamentais, a Viúva Kardec deu continuidade às atividades doutrinárias do esposo até quando sua saúde pôde lhe permitir, pelo que é lembrada pelo Movimento Espírita como uma das maiores personagens da História do Espiritismo.
Amélie Gabrielle Boudet, a Madame Kardec
Amélie era filha do tabelião Julien-Louis Boudet e de sua esposa, Julie-Louise Seigneat de Lacombe. Cursou o primário na sua cidadezinha natal e em seguida, estabelecendo-se em Paris, formou-se pedagoga na Escola Normal Leiga, que seguia o método educacional pestalozziano.
Além de lecionar letras e belas artes, foi poetisa e artista plástica, com domínio das técnicas tradicionais.
Canuto Abreu assim a descreve, em sua obra O Livro dos Espíritos e sua Tradição Histórica e Lendária (que, portanto, mistura “Histórias” e “lendas”):
Amélie Boudet casou-se em 9 de fevereiro de 1832 com o também professor Hippolyte Léon Denizard Rivail — o futuro codificador do Espiritismo. Junto ao esposo, em 1826, foi cofundadora e professora do Instituto Técnico Rivail, que dispunha de cursos de várias disciplinas. Participou ativamente das campanhas do Prof. Rivail em prol da reorganização e democratização do ensino para o seu país, até que em 1833, por efeito da Lei Guizot, o ensino primário na França fosse oficialmente estabelecido.
Em 1835, o Instituto sofreu um golpe financeiro, entrou em liquidação e teve de encerrar suas atividades. Rivail passou a trabalhar como contador de casas comerciais. No entanto, permanecia no casal o ideal educacional e os dois passaram a oferecer cursos gratuitos na própria residência, o que se deu entre os anos 1835 e 1840.
Além de trabalhar também como tradutor de livros e artigos, seu esposo dedicou-se a escrever obras pedagógicas — por exemplo, Catecismo gramatical da Língua Francesa (1848) e Programa dos Cursos ordinários de Química, Física, Astronomia, Fisiologia (1849) — que foram adotadas por diversos estabelecimentos de ensino, inclusive a Universidade de França. As publicações deram prestígio ao professor e, com isso, o casal alcançou uma boa tranquilidade financeira.
Arte gráfica do casal Kardec
A partir de quando seu esposo ingressou no estudo e pesquisa acerca do fenômeno das Mesas Girantes, Amélie foi testemunha e também contribuinte dessa nova fase do pedagogo, que, com o lançamento de O Livro dos Espíritos, em 18 de abril de 1857, passou a adotar o pseudônimo “Allan Kardec”.
Amélie apoiou e participou ativamente dos desdobramentos daquela empreitada transformadora; a própria residência do casal, situada à Rua dos Mártires, n° 8, em Paris, por muito tempo abriu as portas para a multidão que se oferecia para participar das sessões experimentais de Espiritismo, até que fosse fundada a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), em 1858, cuja sede foi estabelecida no Palais-Royal, um importante centro comercial e cultural da Cidade Luz.
Essa sustentação doméstica da Madame Kardec foi determinante para que o codificador pudesse dedicar-se ao intenso ofício que abraçara e cuja responsabilidade que só aumentava, pois que mais adiante viria a lançar a Revista Espírita, editada mensalmente.
Madame Kardec
O reconhecimento das qualidades de Amélie fica evidente nas citações de seu esposo a respeito, tal como nessa carinhosa declaração, em meio a uma prestação de contas à Sociedade Espírita de Paris:
Amélie estava nos seus 74 anos de idade quando ficou viúva, em 31 de Março de 1869. Por ocasião do velório, um velho confrade espírita, o Sr. Muller, discursou: "Falo em nome de sua viúva, da qual lhe foi companheira fiel e ditosa durante trinta e sete anos de felicidade sem nuvens nem desgostos, daquela que lhe compartiu as crenças e os trabalhos, as vicissitudes e as alegrias, e que se orgulhava da pureza dos costumes, da honestidade absoluta e do desinteresse sublime do esposo; hoje, sozinha, é ela quem nos dá a todos o exemplo de coragem, de tolerância, do perdão das injúrias e do dever escrupulosamente cumprido."
Madame Kardec recebeu numerosas e efusivas manifestações de simpatia e encorajamento, da França e do estrangeiro, o que lhe trouxe novas forças para o prosseguimento da obra do seu amado esposo. Ela fundou e assumiu a administração geral da Sociedade Anônima Espírita para a continuação das obras espíritas — em cumprimento ao planejamento de Allan Kardec para a sua sucessão na condução do Movimento Espírita.
Viúva Kardec
Com a idade já avançada, foi delegando as funções práticas das atividades espíritas: a direção da Sociedade Anônima Espírita e da Livraria Espírita, além da redação da Revista Espírita. No desenrolar dos acontecimentos, em pouco tempo a condução geral desses encargos acabaria ficando concentrada nas mãos de Pierre-Gaëtan Leymarie, membro e médium da SPEE e, até então, considerado discípulo e homem de confiança da casa de Kardec. Este, porém, acabaria se transformando em pivô de amargas decepções da Senhora Kardec.
O primeiro golpe ocorreu com o episódio que ficou conhecido como “processo dos espíritas” — fartamente explorado pela mídia antikardecista como um escândalo fatal para a credibilidade da mediunidade e, por conseguinte, do Espiritismo. Isso porque, foi instaurado no dia 16 de junho de 1875, na capital francesa, um processo judicial motivado pela acusação de “falsidade e exploração da credulidade pública” através da comercialização e divulgação de fotografias ditas fraudulentas que supostamente continham impressões espirituais, como vultos e assinaturas de pessoas desencarnadas sobrepostas à imagem de parentes e amigos que posavam para os fotógrafos Alfred Henri Firman e Édouard Buguet. Essa dupla foi processada e condenada juntamente com Leymarie, então diretor da Revista Espírita, em razão deste periódico ter publicado tais retratos e de ter feito publicidade do trabalho dos fotógrafos. No decorrer do processo, os retratistas confessaram que forjaram um terço dos retratos, mas que o restante havia sido verdadeiramente editado pelos Espíritos; Leymarie, por sua vez, declarou que publicara as imagens com a crença de que eram todas autênticas fotografias espirituais e, portanto, que desconhecia a trama dos truques da dupla Friman e Buguet. A inocência de Leymarie foi atestada por Buguet, mas o tribunal acabou condenando a todos eles; Leymarie foi sentenciado a um ano de prisão (abril de 1875 a abril de 1876) e ao pagamento de quinhentos francos de multa.
Ao longo das audiências, foram ouvidas 55 testemunhas, sendo 27 de acusação e 28 de defesa, estando entre as últimas a viúva Kardec. Segundo a opinião de muitos pensadores — inclusive a do escritor Jean Vartier, um ferrenho crítico do Espiritismo à época do processo — aquela corte não estava a julgar apenas o referido episódio, mas toda a Doutrina Espírita, com uma explícita imparcialidade:
Diante de tal intento, pouco se levou em conta o fato de Amélie Boudet já ser octogenária; ela foi obrigada a ouvir calada os muitos insultos feitos aos espíritas — sem exceção de seu marido, que nem presente estava para se defender.
Enfim, Leymarie cumpriu a pena que lhe foi imposta e, laureado “mártir do Espiritismo” pelos confrades, continuou na direção dos trabalhos doutrinários com a anuência de Madame Kardec, que seria golpeada novamente por causa dos assuntos espíritas: nos seus últimos anos, ela teve o desprezar de receber queixas de confrades próximos contra os ditos desvios administrativos e doutrinários daquele seu mandatário — agora acusado de estar inclinado a se aventurar em novas doutrinas e ideias estranhas ao Espiritismo (tais como o Roustainguismo e a Teosofia). Em contrapartida, Madame Kardec continuou encontrando amparo nos amigos diletos: a família de Gabriel Delanne e Berthe Fropo; esta, através da obra Beaucoup de Lumière (Muita Luz), encarregou-se pessoalmente de denunciar publicamente os ditos desmandos de Leymarie e de seus signatários na Sociedade Anônima Espírita.
Sentindo a necessidade de se fazer frente a esses descaminhos, a viúva Kardec — ainda que se abstivesse de atuar diretamente para tal propósito — deu o seu aval à Madame Fropo e a Delanne para que fundassem em 24 de dezembro de 1882 uma nova instituição: União Espírita Francesa (Union Spirite Française) e, por conseguinte, o seu jornal oficial, intitulado O Espiritismo (Le Spiritisme), lançado no ano seguinte.
Viúva Kardec
A lucidez e a saúde de quem “ainda lia sem o auxílio de óculos”, como disse Fropo, foi bruscamente interrompida em 21 de janeiro de 1883, quando então falecera, aos 87 anos de idade. Seu passamento foi assim narrado por sua amiga, que também era sua vizinha:
De acordo com os seus próprios desejos, o enterro de Madame Allan Kardec foi simples e realizado espiriticamente, saindo o féretro de sua residência, na Avenida e Vila Ségur n° 39, para o Père-Lachaise, onde jaziam os restos mortais do esposo.
Túmulo do casal Kardec no cemitério do Père-Lachaise
Na coluna que suporta o busto do Codificador foram depois gravados, à esquerda, esses dizeres em letras maiúsculas: AMÈLIE GABRIELLE BOUDET - VIÚVA ALLAN KARDEC - 21 NOVEMBRO 1795 - 21 JANEIRO 1883.
Não deixando herdeiros diretos, pois que não teve filhos, seu patrimônio teve a destinação rezada no testamento de Kardec, favorecendo a Sociedade Anônima Espírita — que logo mais viria a ser causa de disputas diversas.
Atualmente, um centro de estudos espíritas em Paris homenageia-a com o seu nome: Institut Amélie Boudet.
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