Anna Blackwell (Bristol, Inglaterra, 1816 - 1900) é lembrada pelo Movimento Espírita como a primeira tradutora das obras básicas de Allan Kardec para o idioma inglês, tendo sido correspondente espírita da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas em Londres. Sua família, que também residiu nos EUA, teve uma relevante trajetória na América, no campo da ciência e movimentos sociais. Em The Spirits' Book, sua tradução para inglês de O Livro dos Espíritos de Kardec, Anna Blackwell acrescentou um prefácio contendo uma biografia do Codificador Espírita, que, embora seja um breve relato, é bastante apreciada pela riqueza de informações. Além de tradutora, ela foi professora, escritora, poetisa e jornalista.
Anna Blackwell
Anna Blackwell nasceu em Bristol, Inglaterra, filha de Hannah Lane e Samuel Blackwell, um empreendedor do ramo de refinaria de açúcar. Teve quatro irmãos (Samuel Charles, Henry Browne, John e George) e quatro irmãs (Marian, Elizabeth, Emily e Sarah Ellen), sendo Anna a primogênita.
Do Reino Unido, em 1831, seus pais foram para Cincinnati, nos Estados Unidos da América, onde seu pai montou uma refinaria açucareira. Por força dos negócios, a família mudou-se para outras cidades americanas, incluindo Nova Iorque, Nova Jersey e Filadélfia.
Anna e seus irmãos tiveram bons estudos e alguns deles tiveram grande projeção social nos EUA. Elizabeth, por exemplo, fez história ao conseguir o doutorado em Medicina e ser a primeira mulher a exercer a profissão de médica na América. Outra irmã, Emily, seguiu os passos daquela e foi a terceira médica doutora naquele país. Seus irmãos Samuel Charles e Henry Browne foram renomados abolicionistas e ainda ativistas pelos direitos das mulheres.
Além do preponderante apoio aos seus irmãos, Anna exerceu várias atividades profissionais. Junto com as irmãs doutoras Elizabeth e Emily, fundou uma escola de enfermagem para mulheres, foi professora e ainda tradutora de obras francesas para o inglês, por exemplo, livros de George Sand (pseudônimo da baronesa de Dudevant). Há registros de que tenha trabalhado também como jornalista e correspondente de diversos jornais, de localidades como Estados Unidos, Canadá, África do Sul, Austrália e Índia.
As biografias de seus irmãos notáveis salientam a importância positiva e imprescindível de Anna em suas atividades pessoais, denotando o vigor e a capacidade de sua personalidade. A dedicação aos irmãos parece ter sido a causa primordial para Anna não ter se casado.
Não há informações precisas sobre os primeiros contatos de Anna Blackwell com o Espiritismo, porém, pelos registros biográficos de sua irmã Dra. Elizabeth, supõe-se que Anna tenha se transferido para a França em 1849, acompanhando sua irmã médica que se instalou em Paris a trabalho. Sabemos, porém, que já em 1850 a senhorita Blackwell era ativa na Sociedade Magnética de Paris, dirigida pelo Barão du Potet. O nome dela aparece numa listagem de personalidades em defesa do Magnetismo em seguida ao de um tal Sr. Blackwell (Seu pai? Seu irmão?...).
A prova de sua boa reputação naquela comunidade de magnetizadores fica evidenciada nas suas letras impressas no famoso Journal du Magnétisme [Jornal do Magnetismo], o órgão de imprensa oficial da referida sociedade, como quando ela ali fez uma resenha da obra Explanation and History of the mysterious communion with spirits [Explicação e História da misteriosa comunhão com os espíritos], de E. W. Capron e Henry D. Barron, reportando o misterioso fenômeno das batidas espirituais que agitavam os Estados Unidos desde o célebre caso das irmãs Fox, que principia como que profetizando a consumação de um grande acontecimento que dali brotaria (Espiritismo):
Sabe-se que Anna fez amizade com o casal Kardec e participava da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, tornando-se mais tarde correspondente desta, a partir de quando fixou morada em Londres — provavelmente, outra vez, acompanhando a Dra. Elizabeth em outra incursão profissional.
Foi durante essa estadia na capital inglesa que Anna Blackwell fez a primeira tradução de O Livro dos Espíritos para o inglês, com o título correspondente The Spirit's Book, em 1876, em cuja edição acrescentou um capítulo preliminar contendo a biografia de Allan Kardec: Biography of Allan Kardec. É desse capítulo biográfico que se vale Arthur Conan Doyle para descrever o Codificador Espírita em sua obra A História do Espiritualismo (1926), um clássico da Historiografia espírita.
A propósito, eis um trecho de Anna Blackwell descrevendo o pioneiro espírita:
A Revista Espírita, na edição de março de 1869, traz um artigo intitulado ‘O Espiritismo em toda parte’ assinado por uma certa “Anna”; a autora anota a necessidade de o público inglês conhecer a obra espírita para elucidar e completar os ensinamentos já iniciados pelo do Espiritualismo Moderno na Inglaterra. Não há por que duvidar, portanto, de que se trate de Anna Blackwell; a propósito, no prefácio da sua tradução mencionada, ela falava da necessidade de levar a obra kardecista para seus compatriotas: “Não é de duvidar que, se as obras da Doutrina fossem traduzidas para o inglês, congregariam numerosos partidários, fixando as ideias ainda incertas.”
Adiante, na edição de novembro da mesma Revista Espírita, lemos uma mensagem espiritual assinada por Kardec (recém-desencarnado), conforme o artigo ‘O Espiritismo e o Espiritualismo’, datado de 4 de outubro de 1869, mensagem essa obtida na casa de Anna Blackwell (em Londres), de cujo ambiente fala o comunicante: “Estou mais feliz do que podeis imaginar, meus bons amigos, por vos encontrar reunidos. Estou entre vós, numa atmosfera simpática e benevolente, que satisfaz ao mesmo tempo ao meu espírito e ao meu coração.”
Falando da necessidade de unir o Espiritismo francês e o Espiritualismo vindo da América e propagado na Inglaterra, Kardec exprime a confiança em Anna como elo entre esses dois segmentos:
A mensagem finaliza com um apelo claro: “Traduza as minhas obras! Só se conhecem na América os argumentos contra a reencarnação. Quando as demonstrações em favor desse princípio ali se tornarem populares, o Espiritismo e o Espiritualismo não tardarão a se confundir, tornando-se, por sua fusão, a Filosofia natural adotada por todos.”
E ela — como sabemos — tomou para si essa missão. Para tal intento, Senhorita Blackwell foi secundada por um espiritista britânico, Augustin Babin, que fez uma doação de 5 mil francos. Àquela publicação de The Spirits' Book também ofereceu uma grande contribuição financeira Lady Caithness, a Duquesa de Pomar, também conterrânea da tradutora, que, no entanto, mostrou resistência em aceitar a oferta. A duquesa dizia-se ao mesmo tempo católica, espírita e teosófica, e supostamente pretendia influenciar o trabalho de tradução a fim de acomodar ideias sincréticas, ao que a Senhorita Blackwell — fiel kardecista que era — certamente não admitiria. Ao final, a contribuição da duquesa foi aceita, sem, entretanto, influenciar no trabalho da tradutora.
Já sob a editoração de Pierre-Gaëtan Leymarie, a Revista Espírita, na sua edição de setembro de 1876, reconhece a presteza da moça inglesa:
Além de O Livro dos Espíritos, Anna Blackwell traduziu e publicou na íntegra O Livro dos Médiuns (The Mediums' Book, 1876), O Céu e o Inferno (Heaven and Hell, 1878), além de outros artigos de Kardec que foram publicados por diversos veículos de comunicação no Reino Unido e América.
Anna Blackwell é considerada a primeira tradutora das obras básicas do Espiritismo devido ao caráter oficial de suas traduções (legalmente autorizadas pela Sociedade Anônima Espírita, detentora dos direitos autorais da bibliografia de Kardec) e também pelo seu trabalho sequencial (The Spirit's Book, The Mediums' Book e Heaven and Hell), muito embora seja plausível que antes do lançamento do seu The Spirit's Book já houvessem várias traduções livres, pelo menos de trechos das obras kardequianas. A exemplo disso, sabemos de uma dessas traduções, publicada uma década antes das traduções de Anna Blackwell: Spiritism in its most simple expression (1865), versão inglesa do opúsculo O Espiritismo em sua Expressão Mais Simples, cujos tradutores assinaram pelas iniciais Miss GR. e J. J. T.
É preciso ressaltar que esforços da Srta. Blackwell em verter a codificação espírita para a língua inglesa foram todos prestados com abnegação, conforme é atestado por Berthe Fropo em Beaucoup de Lumière (Muita Luz); no entanto, a dignidade da tradutora foi colocada em questão por Pierre-Gaëtan Leymarie, enquanto dirigente da Sociedade Anônima Espírita (entidade que detinha os direitos autorais dos livros de Kardec): ele estava sendo acusado de não administrar corretamente a herança do casal Kardec em favor da promoção do Espiritismo, por exemplo, não agilizando as traduções; quanto a isto, Leymarie se defendeu alegando os altos custos do trabalho de tradução, ao que Madame Fropo rebateu: “Se o Sr. Leymarie tem pago os seus tradutores como a Srta. Blackwell, que traduziu os livros para o inglês, não tem custado tanto dinheiro assim.” E então reproduz uma carta recebida da amiga inglesa, ratificando seu voluntariado:
Blackwell ainda acrescentou que ela mesma tinha doado um bom valor (1.500 francos) para os anúncios das obras traduzidas nos jornais inglesas, além de gasto outro tanto para cobrir os custos da impressão dos livros depois que Leymarie quis recuar do acordo das publicações a pretexto de outras despesas da Sociedade Anônima Espírita. Ao final, ela apresentou os comprovantes da dívida (mais de 2 mil francos) não honrada por Leymarie. Berthe Fropo também transcreve o testemunho assinado pelos editores gráficos envolvidos nesta questão (Trübner e Cie): “Certificamos que a Srta. Blackwell, longe de ter recebido dinheiro da venda dos livros acima mencionados, ela mesma gastou uma considerável soma para anunciá-los.”
Para além do ofício de tradução, a Senhorita Blackwell foi uma defensora do mestre espírita de quem era admiradora. Intrépida, ela rebateu o respeitado pesquisador espiritualista Alexandre Aksakof na discussão sobre a origem da teoria da reencarnação, em que o russo propunha ter sido um dogma imposto por Kardec aos médiuns que lhe serviam durante a codificação espírita.
Por tudo isso, Anna Blackwell é bem lembrada entre os nomes da galeria dos maiores benfeitores para a divulgação do Espiritismo.
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