Célina Japhet, nome adotado por Célina Eugènie Béquet (Caen, França, 1 de abril de 1822 - Paris, 30 de abril de 1884), que foi uma sonâmbula francesa e uma das primeiras médiuns que contribuíram diretamente com Allan Kardec para a codificação do Espiritismo, principalmente na composição de O Livro dos Espíritos (para o qual ela emprestou sua mediunidade a fim de o autor fazer uma revisão geral do conteúdo da 1ª edição) e de O Livro dos Médiuns.
Célina (às vezes grafada como Cœlina) era filha de François Béquet, comerciante de brinquedos, e Aimable Julie Le Planquais, então residentes em Caen, região da Normandia, no norte da França; depois a família transferiu morada para a capital francesa.
Ela teve uma irmã mais velha, Antonielle Justine (de 1819), mais dois irmãos que lhe sucederam: Georges Alphonse (de 1823) e Aimable Hipollyte (de 1827). O irmão caçula, aliás, ao longo da vida iria ter problemas com a justiça, o que talvez tenha sido a causa dela ter adotado em 1845 outro sobrenome — Japhet — que ela justificou como “por motivos familiares”.
Alguns equívocos históricos acerca desta personagem acabaram se estabelecendo no meio espírita por um bom tempo por conta de informações desencontradas ou mal interpretadas, até que fossem resolvidos por novas pesquisas. Em O Livro dos Espíritos e sua tradição histórica e lendária de Canuto Abreu — que, como o próprio título diz, misturar ficção e história — é dito que seu primeiro nome seria “Ruth” (como também aparece no filme Kardec: a história por trás do nome, direção de Wagner de Assis, 2019) que “Japhet” seria realmente seu sobrenome e que seu pai teria sido um contador e estava viúvo em 1857, ano do alvorecer da Doutrina Espírita (na verdade, ele já estava desencarnado nesse ano, tendo inclusive falecido antes da mãe de Célina). Também já se cogitou que ela tivesse sido neta de Samuel Hahnemann (o criador da Homeopatia) além de que tivesse se casado e então imigrado para a Espanha. Além de registros oficiais, muito do que sabemos a seu respeito é fruto de suas declarações próprias, dadas numa entrevista publicada por Alexandre Aksakof.
Julia Konrad interpreta a Srta. Japhet no filme Kardec: a história por trás do nome
Como a própria narrativa de Célina, sua primeira experiência de transe magnético se deu em Paris, no ano 1840, então nos seus dezessete anos de idade, e sob a influência do Sr. Richard, um magnetizador. Um ano depois disso ela voltou a morar no interior, sofrendo por cerca de dois anos com paralisia nas pernas que a deixou acamada. Em 1843, magnetizada por um dos seus irmãos, ele prescreveu remédios a si mesma e como efeito desse tratamento, em menos de dois meses, recobrou o movimento das pernas, podendo andar de moletas e finalmente, em um ano, estava completamente sadia daquela enfermidade.
Célina volta à Cidade Luz em 1845, a procura do Sr. Richard, quando então conheceu o Sr. Roustan, outro praticante do Magnetismo. Este, Jean-Pierre Roustan, relojoeiro na Capital francesa, passaria a ser o magnetizador oficial da moça e uma espécie de seu agente de negócios — além disso, não faltou quem o supusesse amante da moça. Seus serviços de consulta sonambúlica foram anunciados na imprensa, tal como no jornal Le Cocher, informando o atendimento no endereço: Rua du Marché Saint-Honoré, n° 14 — exatamente o endereço residencial do Sr. Roustan.
Neste período, ela recebeu informações sobre o tema reencarnação, provinda por Espíritos dentre os quais aqueles que se identificaram como o de seu avô, o de Santa Teresa e outros, sendo, portanto, uma das primeiras médiuns pelas quais se levantou a ideia da pluralidade das existências naquele efervescente movimento conhecido como Espiritualismo Moderno — ideia que desde os primeiros manifestos causou controvérsias entre os espiritualistas.
Em um de seus desdobramentos espirituais, Célina teria recebido informações sobre algumas reencarnações de seu magnetizador: Roustan teria tido várias existências corporais na Terra, numa das quais havia sido Japhet, um dos filhos de Noé (personagem bíblico célebre por ter — segundo a tradição — construído a arca durante o grande dilúvio). Daí o porquê ela ter escolhido esse sobrenome adotivo.
Ela também atendia como cartomante, segundo o artigo de André Morin, com uma resenha sobre o romance La Bonne Aventure de Eugène Sue, publicado no Jornal do Magnetismo de 1855, em tom bastante elogioso:
Depois de ganhar certa notoriedade, Célina inicia-se num círculo de estudos magnéticos com o renomado Barão de Güldenstubbé, servindo-se ali de voluntária para os mais diversos experimentos daquele ramo de pesquisa, ao lado de outras personalidades, como o abade Châtel, reunindo-se de 1849 até o ano de 1850 na casa da própria sonâmbula, no n° 46 da Rue des Martyrs, a mesma rua onde, a partir de 1855, iria residir o Prof. Rivail (futuramente Allan Kardec). Também há registros de participações suas no grupo experimental de Alphonse Cahagnet, fundador da Sociedade dos Magnetizadores Espiritualistas e, curiosamente, filho natural da mesma cidade natal de Célina — na comuna francesa de Caen.
Estando ela com 34 anos de idade, finalmente se encontra com Kardec, em 3 de abril de 1856, para daí então passar a contribuir ativamente para a codificação do Espiritismo. Kardec, aliás, depois de destacar o trabalho das irmãs Baudin (Caroline e Pélagie) como as principais médiuns para composição da primeira edição de O Livro dos Espíritos (1857) vai dizer:
As sessões com a Srta. Japhet aconteciam na casa do seu magnetizador, Sr. Roustan, na rua Tiquetone (região central de Paris). Kardec assim descreve o ambiente das reuniões:
Apesar da seriedade daquelas reuniões, com o passar de algumas sessões, os Espíritos recomendaram a Kardec que, a fim de fazer o trabalho de revisão final do conteúdo previsto para O Livro dos Espíritos, com mais calma e para evitar as indiscrições e os comentários prematuros do público, fossem marcadas sessões em particular com a Srta. Japhet, às quais eles se comprometeram em comparecer.
Numa dessas sessões particulares, exatamente na de 30 de abril de 1856, foi que Allan Kardec — então ainda conhecido como Prof. Rivail — recebeu a primeira revelação de sua missão de conduzir a Revelação Espírita:
Em contraste com a recomendação expressa da Doutrina Espírita para a aplicação desinteressada dos dons mediúnicos, a renomada “Srta. Japhet, a sonâmbula” faz profissão com suas faculdades anímicas e, segundo certas acusações, com ávida inclinação ao lucro financeiro.
Champfleury, pseudônimo de Jules François Felix Husson, publicou em 1859 o romance O baile de máscaras da vida parisiense, escrevendo sobre Srta. Célina Japhet de forma bastante desabonadora: no enredo, o personagem Matifeu (espécie de homem de negócios) usava o magnetizador Redjougla (Roustan?) e a sonâmbula Célina Japhet como se fossem dois subalternos dele depois que aquela dupla de sonambulistas, movida por um grande desejo por dinheiro, havia se aproveitado dele por dois anos; quando Matifeu deu-se conta que estava sendo enganado pelos dois escroques, então desconcertou-os, fazendo com que a dupla trabalhasse com exclusividade para ele, por três anos, até que recuperasse os 40 mil francos que aqueles lhe tinham extorquido; Célina e Roustan vendiam atendimento sonambúlico (“Abaixo de cinco francos ninguém tinha direito à consulta”) enquanto Matifeu levava habilmente as pessoas presentes a falarem sobre o assunto que os levava à consulta, transmitindo a Redjougla e a Célina Japhet as informações que estimulavam os seus fenômenos de “dupla vista” e “Redjougla e Céline Japhet, cujo salário era de um louis (moeda de ouro de 20 francos) cada um até quitarem a dívida.
Seja pura ficção difamatória ou seja um retrato baseado numa realidade, o fato é que este romance pôs em questão a reputação de uma médium e um magnetizador numa época em que a fenomenologia espírita estava sob suspeita da opinião geral, vez ou outra surpreendida pelo flagrante de falsas manifestações. Por outro lado, a doutrina kardecista propagava que uma das maiores evidências da autenticidade dos fenômenos e da honra dos médiuns era o desinteresse material — justamente o mote elementar dos escamoteadores e charlatões.
Nesse jogo de forças, Célina e Roustan estavam em xeque.
Em 1861, a edição de novembro da Revista Espiritualista (editada por Joseph Piérart e que rivalizava com a Revista Espírita de Kardec, especialmente por ser contrária à ideia de reencarnação) publica um artigo no qual é exposto a mágoa de Célina Japhet contra o autor de O Livro dos Espíritos, de quem ela esperava uma “legítima compensação moral e material” por seus serviços na composição daquela obra.
Ali achando guarida, Célina integra o círculo de sessões experimentais entre os associados daquela revista. Seu magnetizador lhe acompanha nessa empreitada até 1864, quando enfim desaparece de cena: o registro de óbito dele anota a data 4 de janeiro de 1874 como a de sua morte. Fato curioso é que Célina depois irá dizer que ela continuaria utilizando os objetos de Roustan para entrar em transe. A "senhorita sonâmbula" permanece naquele grupo até 1870, quando este se desfaz, muito provavelmente por conta da Guerra Franco-Prussiana.
De 1871 a 1874, Japhet volta a anunciar seus serviços particulares de sonâmbula, atendendo na Rua des Enfants-Rouges.
Em 1873, Célina concede uma entrevista ao pesquisador espiritualista Alexandre Aksakof, mas a matéria só seria publicada dois anos depois, com ar de “bombástica” e contra o kardecismo, pelo jornal britânico The Spiritualist. Na sua narrativa, Aksakof diz que foi a Paris para informar-se sobre as origens do movimento espírita kardecista e sua “fascinação” pelo dogma da reencarnação, e saber mais dos bastidores da publicação de O Livro dos Espíritos, ainda mais motivado pelo fato desta obra ter sido recentemente traduzida para o inglês e publicada na Inglaterra, cuja tiragem, aliás, foi rapidamente esgotada — segundo o articulista. Estando em Paris, um amigo de Aksakof lhe fala de um certo boato, supostamente espalhado pelos espíritas, sobre a Srta. Japhet estar morta, mas suspeitava que ela estivesse viva e então o encoraja a procurá-la; o pesquisador visitante o faz e a encontra bem viva:
Daí por diante, ela conta ao espiritualista russo detalhes de sua biografia e a versão dela para uma série de ocorridos em torno do desenvolvimento do Espiritismo. Entre outras coisas, ele reproduz a queixa de Célina de não ser devidamente reconhecida por Kardec:
E completa a queixa alegando que Kardec nem sequer presenteou a senhora Japhet com um exemplar do referido livro, mesmo tendo ele se apoderado de um conjunto de manuscritos que tinha levado da casa dela, “concedendo-se o direito de um editor por nunca os ter devolvido”; por inúmeras vezes ela teria reclamado a devolução desse material, ao que Kardec — ainda segundo Aksakof — teria se contentado em lhe responder que ela fosse contra ele na justiça. Por fim, o articulista protestou contra os kardecistas:
Saindo do escopo pessoal, quanto à sonâmbula entrevistada, Aksakof vai finalizar seu artigo declarando que a tese da reencarnação era uma questão de forte predileção dentro da doutrina propagada por Kardec e inicialmente apresentada como um dogma e não um objeto de estudo, servindo-se ele (Kardec) de médiuns escreventes que — na opinião do articulista — “se deixam levar tão facilmente pela influência psicológica das ideias preconcebidas”.
Fazendo a defesa de Kardec — desencarnado havia seis anos — quanto ao “dogma da reencarnação”, Anna Blackwell (a primeira tradutora oficial das obras básicas do Espiritismo para o inglês) escreve um texto intitulado ‘A origem de O livro dos Espíritos de Allan Kardec’ para o mesmo jornal The Spiritualist, pelo qual destaca:
Quanto às queixas pessoais de Célina, desta vez é Pierre-Gaëtan Leymarie (então dirigente da Sociedade Anônima para a continuação das obras espíritas de Allan Kardec) quem faz o rebate, através do artigo ‘Reencarnação’, de novo no The Spiritualist, do qual recortamos o trecho seguinte:
Ainda naquela entrevista a Aksakof, Célina conta que foi ela quem recebeu a revelação de uma dita reencarnação do codificador espírita, quando ele teria sido chamado de “Allan”, completando que a insígnia “Kardec” correspondia ao nome dele em uma outra reencarnação, tendo sido esta segunda revelação recebida por outro médium, o Sr. Roze.
De 1875 até 1877, Célina fez novos anúncios de seus serviços profissionais de sonâmbula. Depois disso, nada mais encontramos de paradeiro dela senão o seu registro de óbito, datado de 30 de abril de 1884, aos sessenta e dois anos de idade, e solteira — pelo menos oficialmente.
Não obstante todas as circunstâncias posteriores, é justo lembrarmos com o sentimento de gratidão os serviços prestados pela Sra. Japhet em prol do Espiritismo e guardarmos seu nome na galeria dos nomes mais importantes para a codificação espírita.
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