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Índice de verbetes


Deus



Deus, em Filosofia, é o ser transcendental absoluto e o princípio originário, organizador e mantenedor de tudo o que existe — isto é, o Universo, que é uma criação divina — inclusive os demais seres da natureza material e espiritual, bem como as leis físicas e morais, sendo ele existente por si só, a causa necessária a finalidade última de tudo. Ele é a base de três grandes religiões: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo; fora do monoteísmo, encontram-se outras concepções acerca da ideia da Divindade, da gênese e do desenvolvimento do Universo, tais como: politeísmo, panteísmo, materialismo e ateísmo. Apoiado na lógica e no testemunho espiritual, o Espiritismo é uma doutrina que se fundamenta na existência e soberania absoluta do Ser Divino, elemento primordial da Trindade Universal — Deus, Espírito e Matéria; segundo a Revelação Espírita, Ele é a inteligência suprema do Universo, a causa primária de todas as coisas; é eterno, infinito, imutável, imaterial, único, onipotente, soberanamente justo e bom; a sua existência se evidencia pelas suas obras e pela Providência Divina. Deus se revela à humanidade na medida em que esta se qualifica para compreender a natureza divina, que se mostra abundante em sabedoria, bondade, justiça e beleza, tendo os Espíritos superiores como seus mensageiros diretos a interagir com os homens através da mediunidade.



Concepções diversas sobre a divindade

É naturalmente intuitiva a ideia da divindade e, desde os tempos mais primitivos, todos os povos desenvolveram uma crença sobre essa ideia, com variadas interpretações sobre a sua essência. A concepção mais comum é a da existência de um ser divino supremo; porém, especialmente nas tradições orientais, a divindade é vista de forma impessoal e se aproxima do conceito de uma potência natural, que gera e que nutre tudo e todos — espécie de mãe-natureza ou alma universal, espécie variante do pensamento panteísta.

De outra forma, no Período Arcaico, a África e os povos do Mediterrâneo desenvolveram culturas politeístas, na qual a potência divina se compunha de vários seres (deuses, ídolos, orixás etc.). A consagração do monoteísmo (crença de uma única e soberana divindade) se efetivou sistematicamente no povo hebreu a partir da revelação mosaica (Lei de Moisés), dando origem ao Judaísmo, da qual tempos depois surgiram o Cristianismo e o Islã.

Na contramão desse sentimento íntimo, certas correntes teóricas modernas propuseram o ateísmo — a negação da existência de Deus —, geralmente em acordo com a negação de toda a espiritualidade, como na concepção materialista. Atribui-se a essa incredulidade sistemática, causas como:

  • Incompreensão da origem e da natureza divina: negam Deus por não poderem penetrar nos mistérios superiores;
  • O problema do mal: por consequência dos ditos males terrenos e do que julgam a imperfeição do mundo, negam a possibilidade de haver um Deus ao mesmo tempo sábio, bom e onipotente (Ver o tópico O problema de Deus);
  • Rejeição ao dogmatismo: baseando-se nas más interpretações teológicas e na imposição das religiões tradicionais acerca das revelações e dos dogmas religiosos, negam a Deus por extensão à rejeição natural a essas religiões.
    “A causa primordial do desenvolvimento da incredulidade está, como temos dito muitas vezes, na insuficiência das crenças religiosas em geral para satisfazer a razão, e no seu princípio de imobilidade, que lhes interdita toda concessão sobre os seus dogmas, mesmo diante da evidência. Se, em lugar de ficarem na retaguarda, elas tivessem seguido o movimento progressivo do espírito humano, mantendo-se sempre no nível da ciência, por certo difeririam um pouco do que eram no princípio, como um adulto difere da criança de berço, mas a fé, em vez de se extinguir, teria crescido com a razão, porque é uma necessidade para a humanidade, e elas não teriam aberto a porta à incredulidade que vem sapar o que delas resta; recolhem o que semearam.”
    Revista Espírita - out. de 1868: ‘Profissão de fé materialista’

Chama-se Teologia (theo = deus + logos = estudo, doutrina) a disciplina científica que trata de Deus, da sua natureza, atributos e suas relações com o Universo e com a humanidade. Cada religião teísta desenvolve sua própria teologia a fim de construir sua doutrina, uma vez que a própria essência dessas correntes religiosas se origina das ideias fundamentais de interpretação de seu modelo de divindade.


Deus na tradição cristã

Segundo uma grande parte do Cristianismo tradicional, a Divindade se divide em “três partes”, ou seja, “pessoas”, formando o que se convencionou chamar de Santíssima Trindade, constituída de: Deus-Pai (o criador do Universo), Deus-Filho (Jesus Cristo) e Deus-Espírito Santo.

Além da demonstrar a irracionalidade da concepção de dividir Deus (que é indivisível) a Doutrina Espírita contesta a ideia dessa trindade divina apoiando-se nas próprias palavras que os Evangelhos atribuem a Jesus, pelas quais, repetidas vezes, o Cristo distingue claramente a si mesmo do seu Pai, bem como se distingue do Espírito Santo.

Sem deixar dúvidas, Jesus diz:

“Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então conhecereis quem sou e que nada faço de mim mesmo, mas falo do modo como o Pai me ensinou. Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho, porque faço sempre o que é do seu agrado.
João, 8:28-29

Ele também reconhece que é inferior a Deus: “O Pai é maior do que eu” (João, 14:28). Fica patente que Jesus não é Deus também na prece do Cristo às vésperas de seu sacrifício, em que diz “Pai, se for possível, afasta de mim esse cálice; mas seja feita a Tua vontade e não a minha vontade.” (Mateus, 26:36-42 - Marcos, 14:34-36 - Lucas, 22:40-44)

Jesus igualmente se diferencia do tal Espírito Santo, inclusive colocando-o acima de si mesmo:

“E, se qualquer disser alguma palavra contra o Filho do homem, ser-lhe-á perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste século nem no futuro.”
Mateus, 12:32

Quando Jesus diz “O Pai e eu somos um”, refere-se obviamente a uma unidade de ideias: a unidade que o Cristo tem com o Pai e com o chamado Espírito Santo é a de pensamentos e sentimentos — e não de identidade —, assim como unidos a ele estão todos os que se sintonizarem com esses mesmos pensamento e sentimentos, ou seja, a doutrina de amor, que é o elemento unificador, tal como podemos ver nesta passagem:

“Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vocês me verão; porque eu vivo, e vocês viverão. Naquele dia conhecerão que estou em meu Pai, e vocês em mim, e eu em vocês.”
João, 14:19-20


Antropomorfismo

Tradicionalmente, as crenças têm atribuído a Deus uma característica antropomórfica; quer dizer, imaginam a divindade como as mesmas feições físicas e os mesmos sentimentos e paixões humanos. Essa comparação vulgar entre Deus e o homem se explica em parte pela incapacidade de o homem abarcar a essência divina; no entanto, ela se enraizou nas religiões ocidentais também devido à interpretação literal e ortodoxa da passagem bíblica do livro Gênesis, 1:26, onde se lê que Deus teria dito: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”; por essa percepção, no segmento dos textos bíblicos, construiu-se uma tradição de um Deus eventualmente ciumento, vingativo e por vezes cruel, tal como certos homens. A essa interpretação estreita, responde Allan Kardec:

“Essas imagens em que Deus é representado pela figura de um ancião de longas barbas e coberto de um manto são ridículas; elas têm o inconveniente de rebaixar o Ser supremo até as mesquinhas proporções da Humanidade; daí, para lhe atribuírem as paixões humanas e a fazerem dele um Deus colérico e ciumento não falta um passo.”
A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, Allan Kardec - cap. II, item 12

O Espiritismo, por sua vez, distingue bem Criador e criatura, sendo o primeiro de imensurável superioridade e completamente isento de qualquer imperfeição.

“A inferioridade das capacidades do homem não lhe permite compreender a natureza íntima de Deus. Na infância da humanidade muitas vezes o homem o confunde com a criatura, da qual lhe atribui as imperfeições; mas, à medida que o senso moral se desenvolve nele, seu pensamento penetra melhor no fundo das coisas e faz da Divindade uma ideia mais justa e mais conforme com a boa razão — ainda que sempre incompleta.”
O Livro dos Espíritos, Allan Kardec - comentário à questão 11


Existência e essência de Deus segundo o Espiritismo

De maneira geral os Espíritos dão testemunho da existência de Deus; somando-se a esse testemunho, a Codificação Espírita evidencia a Divindade pelo princípio racional de causa e efeito:

“Pois bem! Lançando os olhos em torno de si, sobre as obras da natureza, observando a providência, a sabedoria e a harmonia que presidem a tudo, reconhecemos não haver nenhuma que não ultrapasse o mais alto porte da inteligência humana. Desde que o homem não pode produzir tais obras, é que elas são produto de uma inteligência superior à humanidade, a menos que se diga que há efeitos sem causa.”
A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo - cap. II, item 5

Contudo, Deus é insondável para a nossa humanidade, pois falta-nos o órgão adequado, o sentido próprio para vermos e compreendermos a sua essência, como falta ao cego o sentido da visão para que veja as cores. Deste modo, não há como satisfazer a questionamentos comuns acerca da Divindade, tal como as questões aplicáveis às pessoas e às coisas em geral; por exemplo, não há como sondarmos a origem de Deus, posto que a sua natureza pertence a um grau de ciência de que desconhecemos e que não se subordina às exigências de nossas especulações.

Assim sendo, estabelece-se para nós um mistério sobre a Divindade; a visão e compreensão de Deus é privilégio dos Espíritos superiores, aqueles que completaram o seu curso evolutivo e atingiram a perfeição intelectual e moral, a qual todas as criaturas estão destinadas.

Malgrado essa nossa limitação, a obra kardequiana nos apresenta algumas qualidades necessárias que seguramente podemos atribuí-lo, sem as quais ficaria descaracterizada a Divindade (O Livro dos Espíritos - questão 13):

  • Deus é a inteligência suprema: o intelecto do homem é limitado, pois não pode fazer e nem compreender tudo o que existe. Por sua vez, a sabedoria de Deus há de ser infinita; se a imaginássemos limitada num ponto qualquer, poderíamos conceber outro ser mais inteligente, capaz de compreender e fazer aquilo que Deus não faria e assim por diante, até ao infinito.
  • Deus é eterno: se tivesse tido um princípio, ele teria saído do nada ou então teria sido criado por um ser anterior. É assim que passo a passo nos dirigimos ao infinito e à eternidade;
  • Deus é imutável: se fosse sujeito a mudanças, as leis que regem o Universo não teriam nenhuma estabilidade;
  • Deus é imaterial: quer dizer que a sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria, do contrário ele não seria imutável, pois estaria sujeito às transformações da matéria;
  • Deus é único: se houvesse muitos Deuses, não haveria unidade de pensamento nem unidade de poder na ordenação do Universo;
  • Deus é onipotente: porque é único. Se não tivesse a força soberana, haveria algo mais poderoso ou tão poderoso quanto ele; não teria feito todas as coisas e aquilo que ele não tivesse feito seria a obra de outro Deus;
  • Deus é soberanamente justo e bom: sabedoria providencial das leis divinas se revela tanto nas coisas mais pequeninas como nas maiores, e essa sabedoria não permite duvidar nem da sua justiça nem da sua bondade;
  • Deus é infinitamente perfeito: é impossível concebermos Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não seria Deus, porque sempre se poderia conceber um ser que possuísse o que lhe faltasse. Para que nenhum ser possa ultrapassá-lo, faz-se preciso que ele seja infinito em tudo. Como os atributos de Deus são infinitos, não são sujeitos nem de aumento, nem de diminuição, visto que do contrário não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se tirássemos de qualquer dos atributos a mais mínima parcela, já não haveria Deus, pois que poderia existir um ser mais perfeito.

Apresentando essas características, o Espiritismo desmistifica a ideia de Deus feita pelo senso comum, especialmente pelo dogmatismo religioso.


A Criação

De acordo com a Doutrina Espírita, a Criação do Universo é a manifestação de amor e da soberania de Deus. Ela se compõe basicamente de dois elementos gerais: 1) espírito, ou princípio espiritual, do qual são gerados todos os Espíritos (os seres inteligentes da criação, os indivíduos, as pessoas); e 2) matéria, ou princípio material, do quais se formam todas as substâncias (ar, água, terra, carbono, luz etc.). Espírito e matéria são independentes um do outro, mas a união dos dois se faz necessária para que a vida inteligente se manifeste. Contudo, é preciso considerar que, além da forma material que conhecemos em nosso ambiente físico, há formas materiais mais sutis, imperceptíveis a nossos sentidos e instrumentos comuns, por exemplo, os corpos espirituais (perispírito).

Fora a divindade, todos os seres inteligentes (Espíritos) são criados simples e ignorantes, ou seja, inocentes e inexperientes, mas todos igualmente providos com as mesmas potencialidades de desenvolver o intelecto e as virtudes morais, o que se efetua na medida em que eles passam pelas experiências do curso evolutivo, até alcançarem a perfeição espiritual, cuja trajetória pode ser mais ou menos lenta ou rápida de acordo com os esforços de cada qual em promover seu progresso. Os mundos físicos são criados para possibilitar esse curso evolutivo dos Espíritos, através do processo de reencarnação. No plano perfeito de Deus, os diversos ambientes materiais são laboratórios perfeitos para que as inteligências se desabrochem e para ensejar o desenvolvimento moral dos indivíduos através das provas e expiações, ao longo da série de reencarnações necessárias para o Espírito alcançar a sua perfeição — que é a destinação de todas as criaturas.


Providência Divina

A ideia espírita não concebe que Deus fique um só instante inativo. A Providência Divina é então o cuidado de Deus para com as suas criaturas — com todos os seres da criação, conforme as indicações superiores:

Deus se ocupa pessoalmente com cada homem? Ele não é grande demais e nós muito pequeninos para que cada indivíduo em particular tenha alguma importância a seus olhos?
“Deus se ocupa com todos os seres que ele criou, por mais pequeninos que eles sejam. Nada é tão pouco para a sua bondade.”
O Livro dos Espíritos, Allan Kardec - questão 963

Veja-se que a indicação é de que Deus se “preocupa” com tudo e com todos pessoalmente, quer dizer, ele mesmo, por sua ação direta, e não por um mero controle terceirizado ou automatizado. Daí se conclui que ele sabe tudo sobre cada ser, sobre cada fio de cabelo, cada gota d'água que desce na chuva, cada raio de luz — enfim, absolutamente tudo

Para compreendermos como a Divindade recebe as mais sutis e íntimas impressões, bem como responde a cada evento, cada súplica que lhe é dirigida, podemos tomar como exemplo a comparação feita pelo Espírito Quinemant, numa manifestação ocorrida em 1867, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas:

“O homem é um pequeno mundo cujo diretor é o Espírito e cujo princípio dirigido é o corpo. Nesse universo, o corpo representará uma criação cujo Espírito seria Deus (Compreendam bem que temos aqui uma questão de analogia e não de identidade). Os membros desse corpo, os diferentes órgãos que o compõem, seus músculos, seus nervos e suas articulações são outras tantas individualidades materiais — se assim podemos dizer — localizadas em pontos especiais do corpo; se bem que seja considerável o número dessas partes constitutivas, tão variadas e tão diferentes por natureza, não é entretanto duvidoso para ninguém que não se possa produzir movimentos ou que nenhuma impressão possa ocorrer um determinado lugar sem que o Espírito não tenha consciência disso. Há sensações diversas em muitos lugares simultaneamente? O Espírito sente todas elas, distingue-as, analisa-as, atribui a cada uma a sua causa e o seu ponto de ação por intermédio do fluido perispiritual.
“Um fenômeno semelhante ocorre entre a criação e Deus. Deus está em toda parte na natureza, como o Espírito está em toda a parte do corpo; todos os elementos da criação estão em constante relação com ele, como todas as células do corpo humano se acham em contato imediato com o ser espiritual; logo, não há razão para que fenômenos da mesma ordem não se produzam da mesma maneira num e noutro caso.
“Um membro se agita: o Espírito o sente; uma criatura pensa: Deus o sabe. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos são postos em vibração: o Espírito sente cada manifestação, distingue-o e o localiza. As diferentes criações e as diferentes criaturas se agitam, pensam, agem diversamente, e Deus sabe tudo o que se passa e atribui a cada um o que lhe é particular.
“Daí podemos deduzir igualmente a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre si de todos os seres de um mundo, a de todos os mundos e, enfim, das criações e do Criador.”
Quinemant (Espírito)
A Gênese, os Milagres e as Predições... - cap. II, item 27

A compreensão da providência divina requer então que saibamos de outro atributo natural que damos a Deus: a onipresença, ou ubiquidade, que é a capacidade de estar ao mesmo tempo em todo o lugar, e de forma integral, de modo a poder atuar em tudo e estar presente na atuação de cada ser inteligente e estar perfeitamente ciente, por exemplo, até dos nossos pensamentos e sentimentos mais íntimos. Allan Kardec ilustrou essa presença constante de Deus da seguinte forma:

“[..] vamos representá-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente preenchendo o Universo infinito, penetrando todas as partes da criação: a natureza inteira está mergulhada no fluido divino; ora, em virtude do princípio de que as partes de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades que o todo, cada átomo desse fluido, se assim podemos nos exprimir, possuindo o pensamento — isto é, os atributos essenciais da divindade — e estando esse fluido em toda parte, tudo está submetido à sua ação inteligente, à sua previdência e à sua solicitude; não há nenhum ser, por mais insignificante que pareça, que não esteja repleto desse fluido. Então nós estamos constantemente na presença da divindade; não há uma só das nossas ações que possamos subtrair de seu olhar; nosso pensamento está em contato incessante com o seu pensamento, e é com razão que se diz que Deus lê os mais profundos segredos do nosso coração. Estamos nele, como ele está em nós, segundo a palavra do Cristo.
“Para estender sua solicitude a todas as suas criaturas, Deus não precisa então mergulhar seu olhar do alto da imensidade; nossas preces, para serem ouvidas por ele, não precisam percorrer o espaço, nem serem ditas com voz retumbante, porque, continuamente ao nosso lado, nossos pensamentos repercutem nele. Os nossos pensamentos são como os sons de um sino que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente.”
A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo - cap. II, item 24


Revelações divinas

O Espiritismo compreende que, como uma de suas providências, Deus se revela gradativamente à humanidade, na proporção que esta se qualifica intelectual e moralmente. Através da encarnação de seus Espíritos missionários e de interações mediúnicas, todos os povos têm recebido noções de justiça e de bondade, além das demais revelações das leis espirituais.

Destacam-se especialmente três grandes revelações, a saber:

  • Primeira revelação: liderada por Moisés, estabeleceu o monoteísmo entre os judeus e apresentou o Decálogo (os Dez Mandamentos), o código elementar de conduta moral; a síntese das tradições e da lei mosaica encontra-se no Antigo Testamento da Bíblia;
  • Segunda revelação: foi trazida pessoalmente Jesus Cristo — o Messias anunciado no Antigo Testamento — e anuncia, através do Novo Testamento, a vida futura, a fraternidade universal e o mandamento cristão (“Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”);
  • Terceira revelação: inaugurando uma Nova Era para a regeneração da humanidade terrena, o Espiritismo e as manifestações espirituais de todos os gêneros vêm para ratificar as revelações precedentes, desmistificar as más interpretações das crenças religiosas, penetrar no íntimo da natureza espiritual, consolar e animar os homens na sua jornada evolutiva; a Revelação Espírita então realiza a promessa do Consolador, feita pelo Cristo conforme o Novo Testamento; porém, esta nova revelação não está personificada em nenhum revelador e se opera coletivamente:
    “A lei do Antigo Testamento teve em Moisés a sua personificação; a do Novo Testamento está no Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da lei de Deus, mas não está personificada em nenhuma individualidade, porque é fruto do ensino dado não por um homem, e sim pelos Espíritos, que são as vozes do Céu, em todos os pontos da Terra, com a cooperação de uma multidão infinita de intermediários. De certa maneira, é um ser coletivo, formado pelo conjunto dos seres do mundo espiritual, cada um dos quais traz o tributo de seus entendimentos aos homens, para lhes tornar esse mundo conhecido e a sorte que os espera.”
    O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec - cap. I, item 6.

Desta forma, fica patente que a revelação é contínua, acompanhando o desenvolvimento dos povos, tendo em vista o enunciado de Jesus no sermão da montanha: “Bem-aventurados os que têm o coração puro, porque eles verão a Deus” (Ver o cap. VII de O Evangelho segundo o Espiritismo).


Dogmatismo religioso

Certas revelações — por exemplo, através de uma manifestação anímica ou mediúnica — estabeleceram uma tradição religiosa, com seus sacramentos, cultos, dogmas e outros elementos litúrgicos, supostamente inspirados por uma divindade; como consequências, os reveladores se imbuíram de uma tal autoridade e a distribuíram aos seus consagrados, formando uma hierarquia clerical que pretende reservar a estes eclesiásticos a supremacia do entendimento de tais revelações e a autoridade religiosa sobre os leigos (as pessoas comuns, não consagradas pelos sacramentos eclesiásticos); em determinadas épocas e lugares, os religiosos têm proposto ou imposto que esse poder religioso se estenda à ordem civil para formar uma teocracia (sistema de governo em que o poder político se encontra fundamentado no poder religioso, administrado pelos ditos representantes divinos consagrados).

Em contrapartida, o Espiritismo fundamenta-se na força lógica da revelação daquilo que é verdadeiro, e não pela força de uma pretensa autoridade religiosa:

“Então, pode haver revelações sérias e verdadeiras, como há as apócrifas e mentirosas. O caráter essencial da revelação divina é o da eterna verdade. Toda revelação contaminada de erro ou sujeita a modificação não pode vir de Deus. É assim que a lei do Decálogo tem todas as características de sua origem, enquanto as outras leis mosaicas — essencialmente transitórias, muitas vezes em contradição com a lei do Sinai — são obra pessoal e política daquele legislador hebreu. Depois que os costumes do povo se abrandaram, essas leis caíram por si mesmos em desuso, ao passo que o Decálogo permaneceu de pé como farol da humanidade. O Cristo fez dele a base do seu edifício, ao mesmo tempo em que aboliu as outras leis. Se estas fossem obra de Deus, ele cuidaria para que não fossem tocadas. O Cristo e Moisés são os dois grandes reveladores que mudaram a face do mundo, e nisso está a prova da sua missão divina. Uma obra puramente humana não teria tal poder.”
A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo - cap. I, item 10

Totalmente desprovida de liturgia sacramental, dogmas religiosos, hierarquia eclesiástica ou qualquer elemento místico, a Doutrina Espírita se constrói a partir do ensino coletivo da espiritualidade (cumprindo os desígnios da Providência) e da racionalização humana, que submete as revelações espirituais ao crivo da lógica e da razão; por isso, ela é ao mesmo tempo divina e científica: “Em uma palavra, o que caracteriza a revelação espírita é que a sua origem é divina, que a iniciativa pertence aos Espíritos e que a sua elaboração é fruto do trabalho do homem.” (A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo - cap. I, item 13).

No tocante à impossibilidade atual de sondarmos os mistérios divinos, de maneira prática a espiritualidade nos admoesta:

“Deus existe, disso vocês não podem duvidar, isso é o essencial. Acreditem em mim e não queiram ir além; não se percam num labirinto de onde não poderiam sair. Isso não lhes tornaria melhores, mas talvez um pouco mais orgulhosos, pois vocês acreditariam saber, quando na realidade nada saberiam. Então, deixem de lado todos esses sistemas; vocês têm bastantes coisas que lhes interessam mais diretamente, a começar por vocês mesmos; estudem as suas próprias imperfeições a fim de se libertarem delas, o que lhes será mais útil do que pretender penetrar no que é impenetrável.””
O Livro dos Espíritos - questão 14


O “problema de Deus”

Há uma discussão clássica conhecida como “problema de Deus”, bastante recorrida pelos ateus modernos, que procura justificar a não existência de qualquer divindade com base numa proposição atribuída ao pensador grego Epicuro de Samos (341 a.C. - 271 a.C.); segundo esta proposição, a existência de uma divindade careceria que este ser fosse imprescindivelmente provido de três qualidades: infinita bondade, infinita sabedoria e infinita onipotência; havendo um ser nestas condições, dizia Epicuro, que seria natural que este “deus” então criasse o mundo perfeito e, consequentemente, absolutamente bom; portanto, um mundo sem nenhuma imperfeição, sem nenhum mal.

Todavia, o antigo filósofo grego deparou-se num mundo onde ele próprio apontava muitas imperfeições — até mesmo terríveis males. Dessa constatação, Epicuro propôs que não poderia haver um deus criador do mundo, e que se o mundo tinha sido criado por alguém, este não preenchia as condições básicas de uma divindade, haja vista o problema da existência do mal no mundo, porque, em tal condição: 1) esse deus poderia ser sábio e onipotente, mas não seria bom, porque teria criado e permitido o mal no mundo, embora soubesse e pudesse fazer tudo; 2) ou ele seria bom e onipotente, mas não sábio, porque não soube criar o mundo perfeito, embora quisesse e tivesse pleno poder; 3) ou deus seria bom e sábio, mas não poderia ser todo-poderoso, porque não pôde fazer o mundo perfeito, embora esse criador quisesse e soubesse como fazê-lo.

Ao evocar essa proposição, os ateístas modernos se valem de um mesmo exemplo do qual Epicuro usava para enfatizar o mal no mundo: as atrocidades cometidas pelos religiosos em nome de sua divindade — as chamadas “guerras santas”, como as cruzadas dos cristãos e a jihad muçulmana.

Diante de tal problema, as teologias tradicionais ficaram na impossibilidade de satisfazer o dédalo teórico de Epicuro; entretanto, a seu turno, o Espiritismo apresenta a chave para o problema proposto, primeiramente, através de uma compreensão acerca da vida espiritual e das encarnações em outros mundos, e, portanto, não restringindo a nossa existência apenas à condição terrena; segundo, demonstrando a necessidade de o Espírito passar pela senda evolutiva para chegar à sua perfeição espiritual e, com isto, alcançar o mérito da plenitude da vida, sendo então necessário experimentar as mais diversas situações que lhes forneça a ciência das coisas; neste contexto, os “males” e as “imperfeições” deste mundo (ainda de passagem para a Era de Regeneração) não passam de lições e provações para o progresso geral:

“Como o homem deve progredir, os males aos quais está exposto são um estímulo para o exercício de sua inteligência, de todas as suas capacidades físicas e morais, forçando-o a buscar meios de diminuir esses malefícios. Se não tivesse nada a temer, nenhuma necessidade o induziria a procurar o melhor; seu espírito se entorpeceria na inatividade; não inventaria e nem descobriria nada. A dor é o incentivo que impulsiona o homem para frente na estrada do progresso.”
A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo - cap. III, item 5

Mas ao lado dos males naturais, há aqueles que os próprios indivíduos criam por sua incompetência, ou omissão ou má intenção mesmo; estes males os arrastam a expiações (mais ou menos dolorosas, conforme o mal praticado) que têm por objetivos reconduzi-los à estrada do seu progresso pessoal e a devida reparação àqueles que foram prejudicados:

“O sofrimento sendo proporcional à imperfeição, assim como a felicidade é proporcional à perfeição, a alma traz em si mesma seu próprio castigo onde quer que ela se encontre; para isso, não há necessidade de um lugar circunscrito. Portanto, o inferno está em toda parte onde haja almas sofredoras, bem como o céu está em toda parte onde haja almas felizes.”
O Céu e o Inferno - 1ª parte, cap. VII: ‘Código penal da vida futura’, item 5

Em suma, o mal é sempre um bem ainda incompreendido e não realizado em toda a sua plenitude.


Fé em Deus

No seu estágio atual, não sendo possível ao homem terreno compreender a natureza íntima de Deus, ele só pode conceber a Divindade através da ação da , que brota naturalmente de sua intuição espiritual e se fortalece pela racionalização, a partir da premissa: “não há efeito sem causa” (O Livro dos Espíritos - questão 4 e seguintes). Em suma, Deus é uma crença; mas não uma crença mística e irracional, e sim uma crença firmada na lógica, evidenciada pelas obras divinas.

Algumas teologias consideram que a fé seja um dom, uma graça concedida por Deus aos seus eleitos — o que a filosofia espírita rejeita prontamente, em razão do princípio da soberana justiça divina, que não poderia agraciar a uns em demérito de outros. O Espiritismo entende que a fé seja uma aquisição pessoal bem ao alcance de qualquer um:

“Não é à fé que compete procurá-los; cabe a eles ir ao seu encontro e, se a buscarem sinceramente, não deixarão de achá-la. Logo, tenham como certo que os que dizem ‘não desejamos nada de melhor do que crer, mas não o podemos’, apenas dizem com os lábios e não do íntimo, pois ao dizerem isso, tapam os ouvidos. No entanto, as provas chovem ao seu derredor; por que procuram não a enxergar? Da parte de uns, há descaso; da de outros, o temor de serem forçados a mudar de hábitos; da parte da maioria, há o orgulho, negando-se a reconhecer a existência de uma força superior, porque teria de curvar-se diante dela.”
O Evangelho segundo o Espiritismo - cap. XIX, item 7

Aqueles que trabalharam a sua fé nas vidas passadas e já conseguiram um certo progresso nesse sentido, com facilidade, reencarnam e logo assimilam as leis divinas; mas aqueles que têm dificuldades para desenvolver sua fé em Deus, e muitas vezes uma repulsa instintiva, demonstram com isso seu atraso evolutivo e a carência de aprender ainda o bê-á-bá de sua espiritualização.

Para os que têm fé, já que ela é necessária para concebermos a Divindade, há de ser proveitoso acreditar em Deus; dizem os instrutores da codificação kardequiana que a fé é “a mãe de todas as virtudes” (O Evangelho segundo o Espiritismo - cap. XIX, item 11) e com ela os indivíduos caminham mais firmemente para os seus objetivos:

“A fé robusta dá a perseverança, a energia e os recursos que fazem com que os obstáculos sejam vencidos, nas pequenas coisas, como nas grandes; já a fé vacilante gera a incerteza, a hesitação que beneficia aqueles que se deseja combater; ela fé não procura os meios de vencer, porque não acredita que conseguirá.”
O Evangelho segundo o Espiritismo - cap. XIX, item 2


Veja também


Referências

  • O Livro dos Espíritos, Allan Kardec - Ebook.
  • O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec - Ebook.
  • O Céu e o Inferno, Allan Kardec - Ebook.
  • A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, Allan Kardec - Ebook.
  • Revista Espírita, Allan Kardec: coleção 1868 - Ebook.


Tem alguma sugestão para correção ou melhoria deste verbete? Favor encaminhar para Atendimento.


Índice de verbetes
A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo
Abreu, Canuto
Adolphe Laurent de Faget
Agênere
Alexandre Aksakof
Allan Kardec
Alma
Alma gêmea
Amélie Gabrielle Boudet
Amuleto
Anália Franco
Anastasio García López
Andrew Jackson Davis
Anna Blackwell
Arigó, Zé
Arthur Conan Doyle
Auto de Fé de Barcelona
Auto-obsessão.
Banner of Light
Baudin, Irmãs
Bem
Berthe Fropo
Blackwell, Anna
Boudet, Amélie Gabrielle
Cairbar Schutel
Canuto Abreu
Caridade
Carma
Caroline Baudin
Célina Japhet
Cepa Espírita
Charlatanismo
Charlatão
Chevreuil, Léon
Chico Xavier
Cirne, Leopoldo
Codificador Espírita
Comunicabilidade Espiritual
Conan Doyle, Arthur
Consolador
Cordão de Prata
Cordão Fluídico
Crookes, William
Daniel Dunglas Home
Davis, Andrew Jackson
Denis, Léon
Dentu, Editora
Dentu, Édouard
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Deus
Didier, Pierre-Paul
Divaldo Pereira Franco
Dogma
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Doutrina Espírita
Doyle, Arthur Conan
Dufaux, Ermance
Ectoplasma
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Ecumenismo
Editora Dentu
Édouard Dentu
Elementos Gerais do Universo
Emancipação da Alma
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Espiritismo
Espiritismo à Francesa: a derrocada do movimento espírita francês pós-Kardec
Espírito da Verdade
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Espiritualismo
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Faget, Laurent de
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Fox, Irmãs
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Gama, Zilda
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Jackson Davis, Andrew
Japhet, Célina
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O Livro dos Espíritos
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