Evangelho é, na tradição cristã, o conjunto de ensinamentos — a Boa Nova — de Jesus, o Cristo, representando a segunda grande revelação da Lei de Deus para a humanidade terrena; designa também o gênero literário próprio dos livros clássicos que tratam especificamente da vida de Jesus e fazem apologia à sua mensagem. O desenvolvimento do Novo Testamento da Bíblia consagrou quatro evangelhos canônicos, atribuídos aos apóstolos: Mateus, Marcos, Lucas e João; outros textos primitivos, mais ou menos semelhantes, foram rejeitados pelo cânone bíblico, mas ficaram conhecidos como evangelhos apócrifos — não oficiais ou, para grande parte dos cristãos (especialmente para as igrejas tradicionais), textos falsos, clandestinos e sem inspiração divina. Dentre os ditos evangelhos apócrifos, encontram-se os atribuídos a Tomé, Filipe, Judas e a Maria Madalena. O Evangelho segundo o Espiritismo de Allan Kardec, não sendo propriamente uma nova versão do referido gênero, consiste numa releitura dos quatro evangelhos canônicos, interpretando os preceitos morais do verdadeiro cristianismo conforme os princípios fundamentais do Espiritismo, e é adotado pelos espíritas como o código de conduta por excelência e modelo de perfeição para a humanidade
O termo evangelho é oriundo do latim tardio evangelium, transliterado do grego clássico εὐαγγέλιον = “boa nova”, que se compõe de εὐ = “bem, bom” e ἄγγελος = “mensagem, novidade” também válido para “mensageiro”.
Da mesma raiz latina surgem outros derivados, como o adjetivo evangelista, em referência àquele que escreve uma obra desse gênero (por exemplo, João Evangelista), assim como o verbo evangelizar, aplicável no sentido de propagar os ensinamentos dos evangelhos.
O emprego desta palavra — exatamente se referindo à nova doutrina que o Messias veio trazer ao mundo — tem sua origem já nos próprios evangelhos bíblicos, inclusive em fala atribuída ao próprio Jesus, como nas seguintes passagens:
Contudo, antes que qualquer evangelho fosse escrito, as cartas de são Paulo já faziam menção à doutrina de Jesus pelo termo evangelho, como na epístola paulina dirigida à comunidade de Corinto - Grécia, dizendo: “Irmãos, venho lembrar-lhes o evangelho que anunciei a vocês, o qual vocês receberam e no qual continuam firmes.” (I Coríntios, 15:1)
Desde então, obviamente, a palavra foi absorvida pelos discípulos do Mestre da Galileia, como fica evidente nos demais livros do Novo Testamento, a exemplo do que lemos nos versículos seguintes:
O estilo com o qual foram escritos os livros clássicos ditos evangelhos é considera dos linguistas como um gênero literário até então original. Diz-se que o estilo comum mais aproximado ao gênero evangélico é o de biografia; entretanto, os especialistas reconhecem que os evangelhos não são meros relatos da vida ou mesmo da obra doutrinária do Cristo, mas também uma apologia direta, uma propaganda e convite à adesão ao cristianismo. Há sim um contexto biográfico de Jesus, porém com uma característica ímpar: ele é apresentado como o Messias Divino, o filho de Deus e salvador da humanidade. Os textos privilegiam os discursos e as parábolas do Mestre nazareno, trazendo ainda testemunhos e relatos apostólicos, como o da paixão de Cristo e da sua ressurreição.
Vários textos sugestivos de evangelho surgiram ao longo dos anos no período chamado cristianismo primitivo e circularam avulsamente por diversas comunidades cristãs; em face disso, não tardou para brotarem muitas discussões teológicas a respeito dos textos válidos (ditos “inspirados por Deus”) e os falsos (apócrifos).
Arte gráfica com a imagem de Jesus
Quando os romanos estabeleceram a igreja católica como a santa instituição, sentiram então a necessidade de formatar o cânone do Novo Testamento, isto é, a relação dos livros “sagrados” oficializados pelas autoridades eclesiásticas para compor a Bíblia cristã, como uma sequência do Antigo Testamento (que estava formatado, embora discussões posteriores viessem questionar os textos antigos judaicos). O Sínodo de Hipona, realizado no ano de 393, propôs a lista dos 27 mais conhecidos e admitidos textos daquela cristandade e encaminhou a aprovação deste padrão, que seguia a sugestão de Atanásio, bispo de Alexandria, contida numa carta sua de 367 sobre os decretos do Concílio de Niceia.
A listagem de Atanásio recomendava somente fossem aceitos os evangelhos de Mateus, de Marcos, de Lucas e o de João, compondo o Novo Testamento junto com o livro dos Atos dos Apóstolos, as epístolas e o Apocalipse. Ela foi aceita pelos concílios de Cartago (em 397 e 419), sob os auspícios de santo Agostinho; o concílio de Roma em 382 também a avalizou e encomendou no ano seguinte a produção da versão bíblica cristã conhecida como Vulgata, praticamente selando o cânone cristão, embora a sua dogmatização só tenha se efetivado no Concílio de Trento, em 1546.
O Evangelho segundo Marcos é considerado pelos exegetas bíblicos como o mais antigo — embora esteja catalogado como o segundo na ordem bíblica — e aquele que serviu de base para os dois seguintes (Mateus e Lucas), formando assim os chamados Evangelhos sinóticos (semelhantes: descrição repetida de vários episódios e parábolas, mesma cronologia, idêntica estrutura de palavras, dentre outras características), enquanto o quarto evangelho (na ordem bíblica) e o mais tardio, atribuído a João Evangelista, apresenta uma estrutura toda peculiar.
Estima-se que todos os Evangelhos canônicos foram escritos bem depois da crucificação de Jesus, e até mesmo das cartas do apóstolo Paulo; a data mais aventada é por volta do ano 70, quando se deu a destruição de Jerusalém pelos romanos, depois da revolta dos judeus contra a dominação de Roma. A sua autoria é desconhecida: eles foram escritos anonimamente e os nomes dos evangelistas foram depois acrescentados pela tradição cristã, em observâncias com os relatos aproximados dos seguidores mais ligados a cada um dos quatro apóstolos de quem os evangelhos receberam os nomes.
Os textos originais se perderam, junto com as primeiras cópias; contudo, os manuscritos mais antigos demonstram uma notável similaridade de conteúdo — conquanto flagrantes divergências em algumas passagens, encontradas em algumas versões e traduções da Bíblica, sugiram possíveis manipulações intencionais a fim de validar uma ou outra tendencia teológica. Um exemplo desses flagrantes foi apontado por Allan Kardec, com referência ao texto de João, 3: 5:
Quanto aos evangelhos canônicos, podemos considerar a síntese seguinte:
Centenas de outros textos evangélicos foram rejeitados pela igreja e ficaram de fora do cânon bíblico, eles são conhecidos como evangelhos apócrifos, não autoritativos (sem autoridade religiosa). Dentre os fragmentos dessas versões já encontrados, destacam-se os da coleção denominada Biblioteca de Nag Hammad, descoberta numa aldeia egípcia em 1945, compondo-se de manuscritos dos Evangelhos de Pedro, de Felipe, de Tomé, de Judas e o de Maria Madalena.
O Evangelho segundo Tomé traz passagens inéditas da infância de Jesus (inclusive fazendo milagres), além de 114 frases atribuídas ao Cristo, cujo teor é a salvação pelo autodescobrimento, através da sublimação das virtudes — em contradição com a liturgia sacramental da igreja.
Também é bastante lembrado o Evangelho de Maria Madalena, encontrado no Cairo, Egito, em 1896, mas somente divulgado em 1955. Certamente que sua autoria não pertence àquela seguidora de Jesus, mas assim foi nomeado em razão da sua forte presença nos textos, por exemplo, na forma como ela — dialogando com os discípulos — é quem protagoniza a exortação da fé no Cristo, enquanto alguns apóstolos demonstram dúvidas e inquietações, apresentado Maria de Madalena como uma espécie de líder dos cristãos.
Estudiosos independentes também dão destaque ao Evangelho de Judas, de autoria atribuída a escritores gnósticos do século II, contendo uma dissertação histórica de Judas Iscariotes cumprindo os desígnios do próprio Cristo — e, portanto, negando a versão de que tenha sido um traidor; Judas seria então o apóstolo mais fiel e que melhor compreendia os ensinamentos do seu Mestre.
O Espiritismo é uma doutrina essencialmente moralista, quer dizer, que seu objetivo primordial é promover o senso moral da humanidade; para tal finalidade, a Doutrina Espírita acolhe como seu padrão moral a mensagem evangélica do Cristo:
Sendo a moral espírita a mesma moral cristã (cristã aqui no sentido da verdadeira mensagem do Cristo e não exatamente a interpretação das igrejas cristãs), torna-se então imperativo conhecer profundamente o Evangelho de Jesus, razão pela qual os textos bíblicos são referências necessárias para o espírita. No entanto, o codificador espírita ressalva que não se deve interpretar literalmente tudo que está contido nos livros dos evangelistas. Como exemplo concreto da forma simbólica que caracteriza a linguagem daqueles textos, Kardec chama a atenção do absurdo que seria tomar ao pé da letra a passagem do Evangelho segundo Mateus, 24:29-30: “Logo após esses dias de aflição, o Sol escurecerá e a Lua não mais dará sua luz, as estrelas cairão do céu e as potências do céu serão abaladas. Eu vos digo em verdade que esta raça não passará sem que todas estas coisas tenham se cumprido.” A respeito disso, comenta o pioneiro espírita:
Convém ter em mente que os ensinamentos e os feitos conhecidos de Jesus vêm de textos terceirizados, já que ele próprio não escreveu nenhuma obra; em razão disso — embora levando em consideração a inspiração e a proteção espiritual para que os textos evangélicos preservassem a mensagem do Messias ao longo dos anos — é preciso admitir a imperfeição da narração bíblica em muitos dos seus trechos, bem como está demonstrado na reflexão a seguir, que também reforça o dado da terceirização dos enunciados cristãos:
Malgrado a imperfeição humana, inclusive dos evangelistas, a codificação kardequiana reconhece a inspiração divina (via Espíritos superiores, ministros de Deus) nos chamados “livros sagrados”, todos fazendo parte do desenvolvimento progressivo da revelação divina:
Por outro lado, o apego dogmático e intransigente ao sentido expresso e às mais diversas interpretações dos Evangelhos têm feito da tradição cristã das igrejas uma fonte de contínuas controvérsias e dissensões, donde naturalmente se conclui que, havendo diferentes versões, necessariamente haverá distorções, tendo o próprio Jesus previsto a necessidade de futuramente enviar o Consolador para reestabelecer os seus ensinos (João, 14:15 e 17 e 26), para o que o Espiritismo apresenta-se como a doutrina que resgata a essência cristã original:
Com efeito, em face da necessidade de reinterpretar a Boa Nova do Cristo à luz da Revelação Espírita, Allan Kardec publicou em abril de 1864 O Evangelho segundo o Espiritismo, inicialmente intitulado “Imitação do Evangelho”; esta publicação, portanto, ratifica o valor que o Espiritismo dá — com as devidas ressalvas — aos textos do Novo Testamento. Seu prefácio traz a assinatura do Espírito de Verdade (supostamente o próprio Jesus), que assevera o momento oportuno para a revivescência do verdadeiro cristianismo:
O Evangelho segundo o Espiritismo
A Doutrina Espírita cumpre assim o papel do Consolador Prometido por Jesus, sendo legitimamente porta-voz da essência cristã:
A contribuição espírita para uma interpretação mais bem apurada do Evangelho é imensurável, e ele é bem-sucedida nesse propósito exatamente por conta da chave dos seus conceitos doutrinários (em especial, a Lei de Reencarnação) para tantas questões que as teologias convencionais nunca puderam resolver. Sobre as velhas controvérsias dos pais da igreja, Kardec diz:
Com o Espiritismo, toda a magnificência da mensagem crística fica justificada, resgatando a figura de Jesus Cristo ante a lógica e a razão:
A primeira grande revelação da Lei Divina está concentrada na Lei Mosaica (de Moisés) da qual se originou o Judaísmo; ela se notabilizou pelo estabelecimento sistemático do monoteísmo (ideia de um Deus único, criador de tudo e soberano universal) e pelo ordenamento da base das leis naturais, concentradas no Decálogo (os Dez Mandamentos). Não obstante, os judeus deturparam essa revelação, especialmente pelo apego extremo à letra da lei e pela interpretação de que a aliança com Deus era uma dádiva exclusiva para seu povo.
Como o envidado de Deus, Jesus personifica a segunda grande revelação; sua vinda se deu para o cumprimento da verdadeira lei de Deus — o Senhor de todas as nações — então reparando os abusos cometidos pelos doutores da lei do Judaísmo, e ao mesmo tempo trazendo novos ensinamentos, principalmente sobre a vida futura do homem e das relações e consequências dessa vida futura com o caráter pessoal. Nesse sentido, o evangelho de Jesus veio concretamente como uma “boa nova”, uma mensagem otimista realista, por consagrar a todos os indivíduos — sem nenhuma distinção entre as pessoas — a capacidade de “cada qual salvar a si mesmo” mediante o cumprimento da Lei de Deus, e não dependência das formalidades religiosas e dos eclesiásticos.
Jesus ensinando aos apóstolos
São características do Evangelho cristão:
Numa descrição lírica, mas igualmente assertiva, o Espírito Emmanuel (mentor espiritual de Chico Xavier) assim exalta o Evangelho trazido por Jesus:
Falando da excelência moral contida no Evangelho, Allan Kardec exprime:
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