Expiação é um processo, dentro da lei natural de Deus, ao qual os Espíritos em evolução (portanto, imperfeitos) são submetidos com o objetivo de reparar seus erros através de circunstâncias que lhes permitam sofrer semelhantes consequências que outrora eles causaram, para que compreendam os efeitos nocivos de suas imperfeições e reeduquem suas disposições, ao mesmo tempo em que possam reparar os danos a quem tenham prejudicado. O processo expiatório consiste em um dos três principais propósitos das reencarnações, ao lado das provações e missões. As punições desse gênero são basicamente morais, para os desencarnados, e físicas, para os encarnados. Sua aplicação sempre é temporária e proporcional ao erro cometido e à necessidade da conscientização acerca das consequências do ato causal. Em Espiritismo, o caráter de expiação se difere fundamentalmente do conceito comum das tradições religiosas convencionais, que a consideram essencialmente um castigo divino puramente para fazer sofrer o infrator da lei, enquanto na Doutrina Espírita predomina o caráter didático, de refazimento moral e evolução espiritual.
O termo expiação vem do latim expiatìo ou expiatiónis, transliterado do hebraico כִּפּוּר (quipur), ligando-se diretamente à tradição judaico-cristã fundamentada na Bíblia, cuja essência é o necessário castigo àquele que infringir a lei divina ou as normas eclesiásticas (as determinações religiosas). Nesse contexto, essa retaliação tem por finalidade primordial demonstrar o poder e a autoridade de Deus e dos sacerdotes consagrados sobre os fiéis.
Segundo o Dicionário Houaiss, expiação tem quatro conotações básicas: 1) purificação de crimes ou faltas cometidas; 2) meio usado para expiar(-se); penitência, castigo, cumprimento de pena; sofrimento compensatório de culpa; 3) (em religião) no Antigo Testamento, uma classe de contrições que consistia em sacrifícios expiatórios, e cuja finalidade era a de reparar os pecados; 4) (em termo jurídico) cumprimento da pena imposta à pessoa a quem se imputou a prática de um crime. Portanto, todas as significações convergem no sentido de que expiar é pagar pelos erros cometidos.
Entre muitos povos, os infortúnios comuns da vida são geralmente expiações divinas impostas aos pecadores individuais ou a uma determinada coletividade (família, tribo, cidade ou nação inteira) mediante seu mau comportamento. Dentre as punições possíveis, considera-se os reveses financeiros, doenças, abandono e até a morte de um indivíduo; para uma expiação coletiva, considera-se a ocorrência de tragédias naturais como seca, inundações, terremotos, pragas etc. Nessa concepção vulgar, admite-se a divindade — ou os diversos deuses, nas crenças politeístas — com características humanas (antropomorfismo), por exemplo, o temperamento de vingança.
Nas tradições orientais (notadamente no hinduísmo, budismo, jainismo, siquismo e no taoismo), em que a crença em Deus não é comum, o processo expiatório é definido pela ideia do carma (ou karma) como sendo uma lei natural que estabelece uma consequência direta entre uma determinada ação e seus efeitos mediante um princípio moral, consequência essa de natureza boa ou má conforme a qualidade das ações que desencadearam os efeitos.
Além de considerar as expiações naturais impostas pela divindade, muitas tradições religiosas também se concedem o direito de impor sentenças contra aqueles a quem julgam infratores de seus preceitos. Para tal fins, o judaísmo adotou a lei do talião (“Olho por olho, dente por dente”); o cristianismo medieval instituiu o Tribunal da Santa Inquisição, que impunha tortura e por vezes a pena capital; nas igrejas modernas, considera-se suspensão de sacramentos e, nos casos mais extremos, a excomunhão dos ditos hereges.
Desde a mais remota Antiguidade, determinadas crenças desenvolveram diversos rituais litúrgicos para “aplacar a ira dos deuses” e converter a expiação dos pecados por meio de oferendas e de sacrifícios exteriores.
Conforme os textos dos Levíticos, o terceiro livro do Antigo Testamento, a antiga tradição judaica exigia que todo sacerdote e sua casa oferecesse um novilho em sacrifício pelo pecado. Em seguida, eram tomados dois bodes, e um deles seria enviado para o deserto como emissário, no intuito de “levar embora” o pecado do povo. O outro bode era sacrificado e seu sangue aspergido no propiciatório, cobrindo o pecado do povo. Desse costume, originou-se a expressão — ainda hoje muito popular — “bode expiatório” para designar metaforicamente algo ou alguém (principalmente) sobre o qual se faz recair a culpa ou qualquer problema de outrem. Os hebreus então instituíram a celebração anual, até hoje conservada, denominada Iom Quipur, isto é, Dia da Expiação ou Dia do Perdão, realizada no décimo dia de Tishrei, o primeiro mês do calendário hebraico.
Os católicos e grande parte dos cristãos protestantes tomam a crucificação de Jesus narrada nos Evangelhos bíblicos, como simbologia de um novo sacrifício expiatório em favor da coletividade humana, pelo que o Cristo assume a figura do “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” — fazendo menção ao pecado original de Adão e Eva, do qual o restante da humanidade teria herdado parte da culpa; para estes cristãos, a imolação do Messias era necessária para a reconciliação da humanidade com Deus através do sacrifício de seu filho na cruz.
Quanto aos pecados individuais, a igreja católica prega o “sacramento da reconciliação”, mediante o arrependimento e a confissão dos pecados a um sacerdote, que por sua vez aplica a penitência (por exemplo, a reza de um rosário) para então, sendo cumprida a penitência proferida pelo sacerdote, propiciar a remissão absoluta do referido pecado. As igrejas reformistas em geral não seguem a prática da confissão, mas pregam a crença na absolvição completa do fiel que se arrepender e suplicar a Deus pelo seu perdão.
A definição espírita de expiação encontra-se expressamente formatada na obra Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas, publicada por Allan Kardec em 1858, nos seguintes termos:
A expiação é, portanto, um instrumento natural necessário para o cumprimento da lei de progresso espiritual e da lei de justiça, amor e caridade. Como os Espíritos são criados em estado de simplicidade e estão destinados a progredir até o estado de perfeição, eles então passam pelas mais diversas vivências a fim de desenvolverem sabedoria e todas as demais virtudes. Nesse ínterim, eles estão sujeitos às más paixões e outras tantas faltas perante as leis divinas, caindo assim em culpas mais ou menos graves de acordo com o seu grau de consciência e livre-arbítrio; com isso, a expiação é aplicada a título de reeducação, colocando por meio das reencarnações o culpado numa situação semelhante ao contexto que lhe causou a culpa, porém desta vez na posição inversa, experimentando a condição de quem foi prejudicado pelo mesmo ato do qual outrora o expiante foi o algoz, agora sentido os efeitos do mal resultante das imperfeições e a carência de evoluir moralmente.
Um dos exemplos de aplicação da expiação é a inversão da condição social:
A expiação também pode ser aplicada com relação à mediunidade: Espíritos podem ser proibidos de se comunicarem e os médiuns podem ter seus dotes mediúnicos suspensos ou extinguidos caso não façam bom uso deste recurso:
Segundo a codificação kardequiana, a morte prematura é outro caso exemplar de expiação — seja para o Espírito da criança que falece, seja para seus pais (O Livro dos Espíritos, questão 199).
Espíritos recalcitrantes no mal e que não acompanham o progresso geral de um determinado planeta, como expiação, podem sofrer o exílio, sendo transferidos para mundos inferiores (A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, cap. XVIII).
Podem ser expiações igualmente o prolongamento da erraticidade (O Livro dos Espíritos, questão 224-b) e a reencarnação compulsória:
E mais: Espíritos criminosos podem ser constrangidos a permanecer no local do ato praticado como punição, para que “constantemente tenham esse crime diante dos olhos” (O Livro dos Médiuns - 2ª parte, cap. IX, item 132, questão 9); noutros casos, o instrumento da expiação pode ser o campo aberto para a obsessão (Idem - 2ª parte, cap. XXIII, item 252); há, inclusive, os mundos especialmente voltados para processos expiatórios:
Uma peça-chave para se compreender a expiação e tudo o mais relacionado à justiça divina é o mecanismo expiatório — ou seja, como a devida punição chega exatamente ao indivíduo merecedor: Deus criaria algum mal ou inspiraria os Espíritos a fazerem algo ruim contra aquele que devesse sofrer uma expiação?
Nesse particular, diz a Revelação Espírita que cada encarnado tem um anjo guardião encarregado de lhe inspirar o bem, fortalecê-lo nas provações e lhe proteger de determinados perigos — desde nascimento à morte, e por vezes até na erraticidade. E além dos anjos protetores individuais, sabemos que há os Espíritos que dirigem as coletividades, de modo que assim se estabelece um controle espiritual sobre os acontecimentos em geral. Nos mundos mais evoluídos, seus habitantes desfrutam de uma maior liberdade de ação, em razão de seu avançado grau de consciência; nas dimensões menos adiantadas, onde moram seres ainda muito imperfeitos e inconsequentes, esse controle é necessariamente mais rígido, tanto que, no caso da nossa Terra — planeta ainda com traços de mundos expiatórios —, a influência dos Espíritos é bem incisiva: “a influência deles é maior do que vocês imaginam, pois frequentemente são eles que vos dirigem.” (O Livro dos Espíritos - questão 459)
Desta maneira, quando necessário para a instrução ou expiação de seu tutelado, seu anjo protetor pode se afastar temporariamente, deixando-o à mercê da própria sorte e, sem esta proteção especial, o indivíduo fica sujeito às circunstâncias do ambiente. Sua vulnerabilidade é maior nos mundos primitivos e nos mundos de expiação e de provas (como é o caso da Terra) em que, o tempo todo, a cada esquina há um potencial malfeitor. Logo, nem Deus nem os bons Espíritos precisam — nem poderiam jamais, já que são bons — provocar o mal ou inspirar que outros o façam: o mal está iminente entre os seres imperfeitos, que então se infligem reciprocamente o processo de punição pelos seus erros.
O Espiritismo rebate prontamente as penas eternas. A ideia de um julgamento fatal após uma única existência carnal a determinar a destinação eterna da alma pós-morte é incompatível com os atributos naturais da divindade, sobretudo os de bondade e de justiça, pois as mais diferentes condições de existência na Terra implicam numa sorte desproporcional para os indivíduos alcançarem a salvação e, nestas condições, denotariam a imparcialidade do Criador perante seus filhos.
Por sua vez, o mecanismo expiatório estabelecido por Deus permite a redenção de todas as faltas e justifica o Espiritismo em sua negação absoluta da ideia das penas eternas:
As sucessivas reencarnações têm como fundamento a expiação e o melhoramento da humanidade através das provas e missões (O Livro dos Espíritos, questão 167). Na medida em que desenvolve consciência, os Espíritos participam do seu planejamento reencarnatório e então definem determinadas circunstâncias que venham a lhes proporcionar as aquisições que necessitam para avançar na senda do progresso espiritual.
Logo, todo o processo reencarnacionista se desenvolve dentro de uma organização sábia e justa, de modo a propiciar muitas vezes que numa mesma experiência carnal o reencarnante possa se submeter a diversas situações de expiação e ao mesmo tempo passar por outras provações e até executar determinadas missões, de maneira que todas as vicissitudes da vida sejam explicadas e postas em conforme com a sabedoria, bondade e justiça divina, mostrando assim a harmonia do Universo no curso das coisas.
O mecanismo expiatório também dá sustentação à justiça das aflições prometida por Jesus em sua máxima “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados; bem-aventurados os que anseiam por justiça, pois serão saciados.” (Mateus, 5:4 e 10): enquanto a sociedade terrena é muito imperfeita para premiar todas as boas ações e para punir as más ações, a justiça divina é infalível: nenhuma falta lhe escapa e, por outro lado, nenhum bom esforço fica sem recompensa:
O peso e a duração da expiação são proporcionais ao refazimento consciencial do Espírito culpado. Desde que ele compreende o mal que fez, reconhece sua culpa e se arrepende sinceramente, ele pode contar com a misericórdia divina. Normalmente esse arrependimento se dá na vida espiritual, quando sua visão alargada lhe permite enxergar melhor as consequências, mas pode começar ainda durante a encarnação:
Porém, o arrependimento não exime o Espírito da necessidade de expiar o passado, para reparar seus erros perante aqueles a quem prejudicou. Por outro lado, essa conscientização o fortalece no cumprimento dos seus deveres e o faz sofrer menos. Mas se ele se endurecer no mal, sua expiação será ainda mais longa e dolorosa:
Os incontáveis mundos habitados são de diferentes níveis de progresso e neles reencarnam os Espíritos mais ou menos de uma mesma faixa evolutiva. De maneira didática, esses orbes são divididos em cinco classificações: 1) mundos primitivos; 2) mundos de expiação e de provas; 3) mundos de regeneração; 4) mundos ditosos; e 5) mundos celestes ou divinos.
Segundo a Revelação Espírita, a Terra está na segunda classe, em fase de transição para a terceira. Conservando ainda muitos traços característicos de um mundo de expiações e de provas, nosso planeta oferece aos seus habitantes duras condições de sobrevivência física e tormentos psicológicos por conta da companhia de Espíritos bastante imperfeitos — muitos dos quais estão na infância da vida espiritual e, portanto, não vieram aqui necessariamente por expiação, mas para se desenvolverem pelo contato com Espíritos mais adiantados; outros, no entanto, são daqueles que foram exilados de outros mundos e cá expiam seus erros:
Todavia, como os mundos também progridem, a Terra se encaminha para a Era de Regeneração, quando será habitada pela nova geração, fundada em um sentimento e disposições morais daqueles que bem expiaram suas más paixões e sentimentos instintivos degradantes (egoísmo, orgulho, inveja, ciúme, materialismo etc.):
A definição espírita de expiação foi bem interpretada pelos grandes autores kardecistas. O filósofo León Denis, por exemplo, frequentemente ressalta a necessidade de resgatarmos um passado culposo e de fazermos desse conceito uma lição de vida compartilhada, num processo de reeducação mútua e que venha a ter efeitos práticos em todos os sentidos na nossa existência — pessoal e social —, como lemos na passagem adiante:
O Espírito Emmanuel, pela psicografia de Chico Xavier, frisa a condição de missionários de muitos reencarnantes diante de seus sofrimentos e que, portanto, não podemos confundi-los com expiações:
André Luiz, pelo médium Waldo Vieira, faz o seguinte alerta: “Sexo desvirtuado, caminho de expiação.” (Conduta Espírita, cap. 1: ‘Da mulher’).
Fazendo um apanhado de sua vida e obra, a notável médium espírita Yvonne A. Pereira, demonstrando uma elevada compreensão do próprio processo expiatório, vai confessar aos seus leitores:
Joanna de Ângelis, mentora espiritual do médium Divaldo Franco, exorta-nos a uma das mais sublimes de nossas tarefas no terreno carnal:
E finalmente, retornando à codificação espírita, ressaltamos a mensagem do apóstolo Paulo:
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