Fora da Caridade não há salvação é uma expressão recorrente no meio espírita, frequentemente usada como lema ou slogan informal do Espiritismo. Aparece também como o título do capítulo XV do livro O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, onde também se acha a comunicação espiritual assim intitulada, datada de 1860 e assinada pelo Apóstolo Paulo, que justifica sua excelsitude, dizendo: “Nada traduz com mais exatidão o pensamento de Jesus, nada resume tão bem os deveres do homem, como essa máxima de ordem divina”. Com efeito, essa expressão consagra a caridade como a mais sublime virtude e a síntese de toda a moral espírita, espelho da moral cristã de Jesus.
A primeira referência de que temos conhecimento dessa expressão está na Revista Espírita, edição de janeiro de 1861, no artigo ‘A Bibliografia Católica contra o Espiritismo’; nesse artigo, o codificador espírita dá nota da obra Bibliographie Catholique, edição n° 3, de setembro de 1860, editada por Georges Gandy, que então se apresenta em defesa da Igreja Romana e, por conseguinte, em franca oposição ao Espiritismo. Kardec relata que este é o primeiro “ataque sério” contra a Doutrina Espírita — até então, a imprensa e os escritores haviam se limitado “apenas” a ridicularizá-lo, sem demonstrar maiores preocupações.
De fato, observando a rápida propagação da filosofia espírita, aquele editor católico leva a sério a doutrina kardecista, no sentido de considerá-la uma grande ameaça à sociedade; assim, ela apresenta as ideias teológicas que condenam o Espiritismo — que ele acusa ser obra de Satanás — e propõe a sua derrocada. Por sua vez, Kardec vai responder, empregando a expressão de que tratamos:
Portanto, o provérbio Fora da Caridade não há salvação foi originalmente usada pelo pioneiro espírita como uma contraproposta doutrinária, refutando o exclusivismo autoritário da igreja, ao passo em que a Doutrina Espírita elege a caridade como a mais primordial das virtudes morais e a síntese por excelência do evangelho do Cristo, como é tão bem explanado em O Evangelho segundo o Espiritismo, publicado em 1864, justamente no capítulo XV, cujo título é o homônimo da expressão em destaque. Aqui, o mestre espírita transcreve a passagem bíblica descrita como ‘O mandamento maior’:
Em seguida, Kardec, desenvolve seu comentário a respeito da fala atribuída a Jesus, resumindo toda a doutrina do Cristo na referida máxima:
Dando continuidade àquela análise, no item 8 do mesmo capítulo, encontramos mais uma vez a explicação do significado da expressão em questão, o que nos dá a entender da sua importância: “Fora da Caridade não há salvação” é um retruque de Kardec à sentença dos católicos “Fora da Igreja não há salvação”. De fato, a doutrina católica romana prega a necessidade dos sacramentos ministrados pela sua igreja para a salvação da alma diante do Juízo Final. Em consequência disso, a prática espírita era considerada uma não observância aos princípios daquela religião e, portanto, heresia passiva de condenação eterna.
Finalmente, no item 10 do capítulo XV da mencionada obra kardequiana, encontramos uma mensagem espiritual assinada pelo apóstolo Paulo, datada de 1860, cujo título é homônimo à expressão em questão.
Essa contraproposta espírita também é bem argumentada numa ocasião em que Kardec trava um debate com um padre, que, a certa altura, levantou a seguinte questão: “Segundo os Espíritos, quem não crê neles nem nas suas manifestações, deve ser menos favorecido na vida futura?”, ao que Kardec redarguiu:
Fora da caridade não há salvação também é o título de um manuscrito assinado por Kardec, encontrado após a sua desencarnação, pelo qual o codificador faz uma avaliação de sua obra:
Segundo a tradicional teologia cristã, depois de sua jornada terrena — única, inclusive —, a alma é submetida ao julgamento final que decidirá sua sorte eterna após a morte. Uma das alternativas é a da “salvação”, quer dizer, o ingresso no Paraíso, em convívio com Deus, os anjos e os santos. Todavia, é interessante anotar que o critério para essa salvação sempre foi causa de muitas controvérsias entre as religiões (o estudo sobre a salvação é chamada de Soteriologia): para uns, bastaria a fé, enquanto outros reclamam fé e boas obras, ao passo que outros teólogos pregam que somente a graça divina pode concedê-la — fora outras concepções. Para o clero católico comum, não há dúvida de que a salvação da alma passa necessariamente pelos seus altares, donde vem a pregação “Fora da Igreja não há salvação”.
Já para a Doutrina Espírita, as ideias de salvação, juízo final, paraíso, inferno, satanás etc., empregadas na Bíblia, são figuras de linguagem. As almas (Espíritos) passam por uma série de reencarnações a fim de progredir e alcançar o último grau de perfeição intelectual e moral cabível a cada qual — coisa inalcançável em uma única experiência terrena, obviamente. Portanto, ao invés de um julgamento único e definitivo, o Espírito se submete regularmente à lei de causa e efeito, colhendo os frutos do bem que fez e expiando as consequências de suas más ações, depurando suas imperfeições e aperfeiçoando suas qualidades. Nessa concepção, salvação se aproxima da ideia de melhoramento espiritual — que implica em uma melhor condição de felicidade a cada novo estágio evolutivo conquistado.
Diante desse contexto, Allan Kardec então converte o refrão católico substituindo o item igreja por caridade. Para os católicos, a melhor sorte se encontra na observância dos dogmas da igreja; para os espíritos, está na prática da caridade.
No entanto, convém ponderarmos sobre a definição espírita para o termo caridade. Muito frequentemente esta palavra é empregada como sinônimo de mero benefício material, esmola, donativo e qualquer auxílio — principalmente material — em favor de alguém em situação de inferioridade (física, social, moral etc.), como um ato de piedade circunstancial. A seu turno, a codificação espírita conceitua esta virtude como o exercício do verdadeiro amor (puro, incondicional, sem interesse de qualquer recompensa) e ao mesmo tempo um dever de cada indivíduo para com os demais, em todas as circunstâncias. Assim, enquanto o amor é um sentimento, a caridade é um ato (o amor em ação):
A exemplo de Allan Kardec, o movimento espírita tem usado a expressão “Fora da Caridade não há salvação” habitualmente, de modo informal, como um lema ou um slogan espírita — uma espécie de breve definição de conduta doutrinária.
É, pois, uma frase efeito, ilustrativa, sem os rigores da exatidão linguística ou de qualquer outra formalidade, pois, numa análise mais ortodoxa, poderia ser dito que tal locução é um tanto reducionista, visto que, ao lado do desenvolvimento da caridade, igualmente o aperfeiçoamento espiritual nos impõe o desenvolvimento das capacidades intelectivas, colocando sabedoria e caridade lado a lado, como os dois suportes para a evolução individual, tal como prescrevem os Espíritos colaboradores da codificação kardequiana, que dizem aliás que o intelecto precede a moral, e que este decorre daquele. E ainda:
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