Jean-Baptiste Roustaing (Bègles, 15 de outubro de 1805 - Bordeaux, 2 de janeiro de 1879) foi um influente advogado, autor de vários livros jurídicos, chegando a dirigir a Ordem dos Advogados de Bordeaux, e que no final da vida descobriu-se simpático às ideias espíritas, a partir do que ele se sentiu tocado a contribuir com esta causa atendendo ao que supôs ser um chamado especial dos Espíritos de Moisés e dos evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João) para coordenar uma nova fase da Revelação Espírita através de mensagens psicográficas recebidas pela médium belga Émilie Collignon que, sob a coordenação de Roustaing, deram forma à coleção, originalmente publicada em três volumes: Os Quatro Evangelhos (Les Quatre Évangiles), subintitulada Espiritismo Cristão ou Revelação da Revelação (Spiritisme Chrétien ou Révélation de la Révélation) e lançada em 1866. As ideias excêntricas desta obra foram recebidas com ressalvas por Allan Kardec e então rejeitadas pelos demais confrades da primeira hora; seu autor permaneceu no ostracismo até que, logo após sua morte, seu testamentário — Jean Guérin — investiu na divulgação de um movimento roustainguista que, embora não tenha conseguido uma grande expressão numérica, tornou-se pretexto de algumas cisões entre os espíritas da primeira geração. Ignorado na França e nas demais localidades onde o Espiritismo prosperava, o roustainguismo encontrou uma excepcional aceitação no nascente movimento espírita brasileiro, também sendo motivo de sérias discordâncias entre os kardecistas, mas cuja influência diminui consideravelmente ao longo das décadas, de modo que o status deste personagem, perante aqueles que estão mais ou menos familiarizados com esta polêmica, geralmente se divide entre o de um grande apóstolo da continuação (e até aprimoramento) da Revelação Espírita e o de um infeliz dissidente da Doutrina Espírita.
Os Quatro Evangelhos de J.-B. Roustaing
Roustaing nasceu e cresceu na região da Gironda, sudoeste da França, cujo principal centro urbano e político é Bordeaux. Foi filho do negociante François Roustaing e sua esposa, Margueritte Robert. Teve três irmãos: Joseph, Alfred e Jeanne.
Sua juventude foi repleta de dificuldades, obrigando-o, desde cedo, a trabalhar para que pudesse custear seus estudos. Malgrado as carências financeiras e problemas de saúde ele concluiu os estudos iniciais no Collège Royal de Bordeaux e depois seguiu para Toulouse, onde iria cursar Direito. Nesse ínterim, sustentou-se lecionando literatura, ciências, filosofia e matemáticas especiais, a princípio em Toulon, onde residiu de 1823 a 1826.
Uma vez diplomado em Direito, estagiou em Paris, de 1826 a 1829, então ingressando na advocacia por volta de 1830. Logo mais estabeleceu morada em Bordeaux, onde residiu pelo resto da sua vida. Sua inscrição na Ordem dos Advogados daquela cidade foi registrada em 3 de agosto de 1847. Já no ano seguinte foi eleito bastonário daquela instituição — título este que é conferido ao advogado de maior saber jurídico e de reconhecida probidade pessoal e profissional.
Casou-se tardiamente, aos quarenta e quatro anos, em 24 de agosto de 1850, com sua prima Elisabeth Roustaing, que já era viúva, sem filhos do primeiro matrimônio. Cinco anos depois ele se afasta das funções administrativas da Ordem dos Advogados, porém continua prestando serviços como advogado consultor.
Em 1858 ele é acometido de uma grave enfermidade, paralisando suas atividades profissionais. Em seus escritos, Roustaing não especifica que doença o acometeu, mas há especulações a partir de uma informação de que ele sofrera de “esgotamento do corpo”:
O restabelecimento completo da sua saúde só viria em 1861. Nesse meio tempo, dedicou-se às ações beneficentes, pelo que foi descrito como “um homem de coração simples e de espírito humilde”, além de outros honrosos predicados:
Sem deixar descendentes, Jean-Baptiste Roustaing faleceu no dia 2 de janeiro de 1879, aos 73 anos, sendo sepultado no cemitério da Chatreuse, no jazigo familiar onde foram depositados os restos mortais de sua esposa, falecida apenas dois meses antes. O Journal de Bordeaux do dia 6 de janeiro de 1879 registrou o discurso do Sr. Battar, então bastonário da Ordem dos Advogados de Bordeaux, que fez extenso elogio do colega, ressaltando em Roustaing as qualidades de excepcional advogado e de conhecido benfeitor no campo da caridade prestada aos pobres e enfermos:
Enquanto cuidava da sua saúde, em 1861, Roustaing ouviu de um médico notícias do movimento espírita e da possibilidade da comunicabilidade dos Espíritos, imediatamente interessando-se pelo fenómeno das Mesas Girantes, pelas quais se fazia evocação de Espíritos. Ele mesmo descreve suas impressões a respeito de sua recente descoberta:
Bem nessa época, Allan Kardec estava trabalhando na codificação da Doutrina Espírita; ele havia publicado O Livro dos Espíritos (1857), Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas (1858), O que é o Espiritismo (1859) e O Livro dos Médiuns (1861). Roustaing então leu Kardec e considerou sua obra uma revelação lógica e racional. Sobre o livro inaugural de Kardec, escreveu o nobre advogado bordelense:
Da leitura que fez de O Livros dos Médiuns, ele apontou, dentre outras coisas:
Após estudar e examinar as obras kardequianas, debruçou sobre a História, desde sua origem até os dias contemporâneos, buscando os registros oficiais sobre as comunicações entre o mundo espiritual e o mundo corporal. Consultou os livros de filosofia profana e religiosa, desde os antigos, ao século XVIII. Também pesquisou os textos dos prosadores e poetas, objetivando analisar as crenças e costumes dos tempos, com relação a imortalidade e comunicações com Espíritos. Mergulhou profundamente no Antigo e no Novo Testamento, a fim de verificar o encadeamento de todas as revelações da lei de Deus e, ao final, reconheceu que o intercâmbio entre os desencarnados e os encarnados era um fato patente, de ordem divina e providencial, um “instrumento de que se serve Deus para enviar aos homens a luz e a verdade adequadas ao tempo e às necessidades de cada época, na medida do que a Humanidade, conforme o meio em que se acha colocada, pode suportar e compreender, como condição e elemento do seu progresso."
Cada vez mais entusiasmado, o jurista escreve ao codificador espírita:
Em seu comentário, pela convicção e assertividade expressas nesta carta, Kardec assim falou do recém-convertido espírita de Bordeaux: “Vê-se que, embora iniciado recentemente, o Sr. Roustaing passou a mestre em assunto de apreciação. É que estudou séria e profundamente, o que lhe permitiu apanhar, com rapidez, todas as consequências dessa grave questão do Espiritismo, não se detendo, em sentido oposto a muita gente, na superfície.”
Não há como afirmarmos categoricamente, porém é muitíssimo provável que J.-B. Roustaing e Allan Kardec nunca tenham se encontrado pessoalmente.
No começo do ano de 1861, Émile A. Sabo (chefe da contabilidade da Companhia Estradas de Ferro do Sul) havia fundado um grupo espírita em Bordeaux, ao qual logo mais Jean-Baptiste Roustaing se filiou e passou a frequentar assiduamente. Em agosto daquele ano, Sabo enviou um convite para que Kardec aproveitasse as férias da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) naquele mês e viesse visitar os confrades bordelenses, que planejavam instituir uma Sociedade Espírita de Bordeaux nos mesmos moldes daquele dirigida pelo mestre, e contavam que sua presença abrilhantasse aquela inauguração. O mestre atendeu à solicitação e ficou maravilhado com o sucesso da doutrina naquela região, também extremamente feliz com a recepção dos confrades sulistas, mas Roustaing não pôde comparecer: a correspondência entre o líder espírita e o jurisconsulto dão conta de que este último estava numa casa de campo cuidando de sua esposa enferma.
Ausente, mas lembrado: durante as cerimônias de inauguração da sociedade espírita bordelense, em 14 de outubro, Roustaing é citado no discurso do Dr. Bouché de Vitray:
Por ocasião das experimentações mediúnicas no grupo de Émile Antoine Sabo, o mestre em advocacia mais e mais se entregava aos estudos espíritas. Conta Roustaing que na véspera do dia 24 de junho de 1861 ele havia rogado a Deus, “no sigilo de uma prece fervorosa”, que permitisse a manifestação do Espírito de João Batista, bem como a do próprio pai e também a do seu guia protetor. O que se sucedeu a isso, ele conta nestes termos:
Segundo ele, Pedro, o chefe dos apóstolos compareceu à sessão do dia 30 de junho preparando-o sobre quando se realizaria o que lhe estava reservado. Roustaing convenceu-se de ter sido designado para uma grandiosa tarefa missionária, qual seja a de coordenar e publicar novas “comunicações de tão alto interesse”: um material sobre os Evangelhos, os Dez Mandamentos e Jesus, material esse a ser ditado por Moisés e pelos evangelistas — Mateus, Marcos, Lucas e João — e que inauguraria uma fase para a Revelação Espírita: a fase do “Espiritismo cristão”, sendo assim a “revelação da revelação”.
Para tanto, ele conta que em dezembro daquele 1861 foi-lhe sugerido ir à casa do casal belga Emilie e Charles Collignon para apreciar um quadro mediunicamente desenhado (muito provavelmente a mesma pintura que deixou impressionado Allan Kardec durante sua visita a Bordeaux, e nesse caso um quadro pintado pela filha do casal Collignon, Jeanne, de 19 anos). A senhora Émilie Collignon — que ele não conhecia, mas a quem estava predestinado a ser apresentado — seria a médium que psicografaria a obra roustainguista. Nada excepcional suscitou nesse primeiro encontro, mas uma semana depois ele retornou àquele endereço, apenas para “agradecer o acolhimento” daquela visita e eis que, quando ele já estava de partida, a médium sentiu uma agitação fluídica na mão e então escreveu uma mensagem espiritual confirmando os presságios do visitante, que dizia:
Ainda que “tocado de surpresa” e mesmo cheio de “temor de não ser capaz nem digno do encargo deferido”, conquanto muito alegre, Roustaing aliou-se à Madame Collignon e na semana seguinte começaram a tocar o projeto.
Sobre esta médium, dirá Kardec em carta à esposa, Amélie Boudet, escrita durante nova viagem dele à região de Bordeaux, em 1862, ocasião em que compartilhou de um almoço com o casal Collignon:
Na mesma correspondência, ele acrescenta: “Nada direi do senhor Roustaing, que não pôde vir a Bordeaux porque está retido, dizem, em sua casa de campo, devido à doença de sua mulher. Creio que minha estadia aqui não aumentará seu crédito.” Ou seja, mais uma oportunidade desperdiçada de se conhecerem.
A partir do ano seguinte, a Sra. Collignon e Kardec trocarão cartas, e numa delas (dezembro de 1883) a própria médium confessará estranhar as "revelações" de que ela seria portadora, sob a coordenação de Roustaing, ao que Kardec lhe recomenda "paciência”.
Ainda no finalzinho daquele mágico ano de 1861, o entusiasmado Roustaing elabora seu testamento e destina um considerável legado à Sociedade Espírita Parisiense dirigida por Allan Kardec em favor do Espiritismo. A carta que acompanhou a cópia do testamento enviada à SPEE foi lida por Kardec na sessão de 20 de dezembro de 1861 e reproduzida na Revista Espírita, porém sem citar o nome do doador, assim justificando:
O prometido material revelador foi precisamente indicado pelos Espíritos dos evangelistas para ser intitulado como “Os Quatro Evangelhos - Espiritismo Cristão” — não obstante o coordenador da obra ter adicionado o pretencioso subtítulo: “ou Revelação da Revelação”. A elaboração da obra estendeu-se de dezembro de 1861 a maio de 1865, portanto durando 3 anos e 5 meses. O volumoso resultado foi divido em três volumes: os dois primeiros, lançados no dia 5 de abril de 1866 e o segundo volume no dia 5 do mês seguinte.
No seu prefácio, o coordenador grafou:
Não sabemos qual foi a tiragem dos volumes originais de Os Quatro Evangelhos e nem sobre sua vendagem, mas é fato que sua aceitação no meio espírita foi irrisória, talvez muito por conta da resenha feita por Allan Kardec na Revista Espírita de junho de 1866, dois meses após o lançamento da obra roustainguista. Apesar de dizer que se tratava de “um trabalho considerável” e que para os espíritas ela tinha o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada em O Livro dos Espíritos, em O Livro dos Médiuns e em O Evangelho segundo o Espiritismo, o pioneiro espírita faz algumas ressalvas.
Por exemplo, pareceu estranho a Kardec que uma tal pretensa revelação abdicasse de um dos fundamentos da Revelação Espírita que é o controle universal do ensinamento dos Espíritos; Roustaing, por sua vez, contentou-se em se servir de uma única fonte: a médium Sra. Collignon.
Mais estranho ainda foi o que ele considerou como a pedra angular dessa “revelação”: a tese de que Jesus não teve uma encarnação comum, num corpo carnal, mas apenas um corpo fluídico semelhante a um agênere, e que isso explicaria todos os fatos extraordinários e miraculosos da vida do Cristo. Numa primeira apreciação, então, dirá Kardec:
Além disso, ele comentará que que certas partes foram desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza, e que se a obra se tivesse limitado ao estritamente necessário, poderia ter sido reduzida a dois ou mesmo a um só volume, ganhando com isso em popularidade.
Como a Revista Espírita dirigida por Kardec não mais notificou nada sobre a obra de Roustaing, subentende-se que os “numerosos comentários” esperados sobre ela não foram tecidos e que, portanto, sua repercussão foi mínima, inclusive porque o próprio autor de Os Quatro Evangelhos, enquanto encarnado, não retrucou nem investiu sistematicamente na propagação de sua obra.
Dois anos depois, o líder do movimento espírita sentiu necessidade de voltar a tratar da questão da natureza do corpo de Jesus na obra A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, desta vez de forma mais assertiva em oposição à tese do corpo fluídico proposto por Roustaing, levantando também uma grave consequência caso se admitisse o contrário:
E finalmente conclui Kardec: “Portanto, Jesus — como todo mundo — teve um corpo carnal e um corpo fluídico, o que é atestado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos psíquicos que marcaram a sua vida.” Apesar disso, Os Quatro Evangelhos de J.-B. Roustaing foi incluído por Kardec na lista do Catálogo Racional — um suplemento originalmente distribuído junto com o fascículo da Revista Espírita de abril de 1869, contendo uma relação sugestiva de “obras para se fundar um biblioteca espírita”, incluindo aí obras positivamente espíritas e outras (inclusive desfavoráveis à doutrina) que de alguma forma ajudassem a aprofundar o estudo das questões pertinentes ao Espiritismo.
A propósito, o autor desse catálogo nem chegou a assistir à sua distribuição: Kardec faleceu um dia daquele lançamento; Roustaing, a seu turno, viveria por mais uma década — e publicamente em silêncio.
É notável que Jean-Baptiste Roustaing tenha editado seu testamento, logo após o falecimento da esposa, mas sem retirar a cláusula que beneficiava boa parte de sua herança à Sociedade Espírita de Kardec — conforme a interpretação de seus biógrafos Jorge Damas e Stenio Monteiro de Barros, a partir da seguinte cláusula do segundo e definitivo testamento:
Como não havia nenhum herdeiro familiar de primeiro grau, ele cuidou de dar uma melhor destinação aos seus bens. Além de reservar a parte necessária para os parentes mais próximos (neste caso, os sobrinhos Joseph e Georges Roustaing, e sua irmã Nauberg), ele fez algumas doações a terceiros, dentre os quais a Sra. Collignon (a médium que psicografou o material de Os Quatro Evangelhos), bem como foi generoso com duas instituições de caridade na cidade de Bordeaux: o Asilo das Crianças Assistidas e Abandonadas e a Sociedade de Beneficência.
De modo especial, ele elegeu como seu agente testamentário Jean Guérin, descrito como “Dr. Guérin, proprietário, residente na comuna de Villenave de Rion, no lugarejo de Lormon”, a quem ficou encarregado também de gerir 40 mil francos na tradução, impressão e publicação das obras literárias doutrinárias de Roustaing (Os Quatro Evangelhos, manuscritos etc.). E é justo dizer que o agente escolhido foi um fiel roustainguista.
Jean Guérin (1827-1885)
Jean Guérin, portanto, era o responsável por executar a designada doação de Roustaing à sociedade que centralizava a continuação das obras doutrinárias de Allan Kardec. Na época da composição desta cláusula testamentária (1861) a entidade existente era a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, então presidida por Kardec; com a morte do codificador, porém, em paralelo a esta instituição, a viúva Kardec instituiu outra — conhecida como Sociedade Anônima Espírita — sem fins lucrativos, mas criada exatamente para poder captar e administrar recursos financeiros (entidade que mais tarde receberia toda a herança da família Kardec), já que a SPEE não tinha autorização legal para tal objetivo por ser meramente uma sociedade de estudos. Por conta disso, Guérin tratou do referido repasse testamentário com Pierre-Gaëtan Leymarie — na época, diretor geral da Sociedade Anônima fundada por Madame Kardec, depois rebatizada para Sociedade Científica do Espiritismo (1883).
Nessas tratativas, porém, algumas personalidades kardecistas acusaram Guérin de, ao invés de simplesmente entregar os 20 mil francos doados por Roustaing à entidade kardecista, ter usado tais recursos — em cumplicidade com Leymarie — para ganhar influência no movimento espírita e nele insuflar as ideias roustainguistas então francamente vistas em oposição à Doutrina Espírita: através de artigos na Revista Espírita, de palestras e de outros eventos patrocinados pela Sociedade Espírita, Guérin e Leymarie estariam desenterrando J.-B. Roustaing e desonrando o fundador do Espiritismo.
Em defesa de Kardec e contra o roustainguismo, Berthe Fropo, amiga íntima do casal Kardec, dedicou uma obra inteira — Muita Luz (Beaucoup de Lumière) — para denunciar aquilo que ela considerou um conluio entre Guérin e Leymarie, convocando então os “espíritas sinceros” a reagirem contra esse tal desvio doutrinário:
A propaganda roustainguista de Guérin junto ao movimento espírita provocou uma cisão tão séria que fez surgir a União Espírita Francesa em franca oposição à Sociedade dirigida por Leymarie, além do jornal O Espiritismo (Le Spiritisme) em oposição à Revista Espírita, mediante os esforços de valorosos confrades, tais como: Berthe Fropo, Gabriel Delanne, Sophie Rosen, Léon Denis etc.
O clímax da polêmica entre kardecistas e o roustainguismo de Guérin aconteceu a partir de junho de 1883 quando, junto com a edição da Revista Espírita daquele mês, foi distribuída uma inusitada brochura intitulada: Os Quatro Evangelhos de J.-B. Roustaing: resposta aos seus críticos e seus adversários, editados pelos discípulos de J.-B. Roustaing. Para a surpresa de todos, este opúsculo trazia um capítulo oferecendo então uma “Resposta ao artigo de Allan Kardec”, artigo esse publicado na Revista Espírita de junho de 1867, como já citado aqui.
A resposta é dura e mira frontalmente Kardec. Para começar, acusa o pioneiro espírita de pretender ser o “único distribuidor da luz”. Depois, critica-o por não aplicar em sua própria obra o critério do controle universal do ensinamento dos Espíritos:
Enfim, o suplemento fazia total apologia à tese roustainguista do corpo fluídico de Jesus e demais conceitos místicos propostos na tal “revelação da revelação”.
Em oposição ao mencionado suplemento, a UEF publicou no mesmo ano o opúsculo J.-B. Roustaing diante do Espiritismo: resposta aos seus discípulos. Nele, Fropo replica o infame artigo dos discípulos do célebre advogado:
Resposta da UEF ao roustainguismo de J. Guérin
Sem entrar na questão “política” desta polêmica, Léon Denis — o grande filósofo e apóstolo de Kardec — certa vez, em resposta a um confrade de Marselha que propunha que a codificação kardequiana estaria repleta de dogmatismo e misticismo, usou Roustaing como exemplo de uma obra mística, dogmática e efêmera:
Seria Leymarie um convicto roustainguista? Apenas um interesseiro que se deixou seduzir pelos recursos do Sr. Guérin? Ou não mais que um editor eclético a procura de fomentar através da Revista Espírita um livre debate sobre as mais variadas ideias acerca da temática espiritualista? O pesquisador Carlos Seth Bastos então sugere:
Com a morte de Jean Guérin em 26 de setembro de 1885, o roustainguismo perdeu sua força propagandista e praticamente despareceu do movimento espírita — exceção feita ao do cone sul das Américas.
Se o terreno europeu era árido demais para as ideias de Os Quatro Evangelhos, o solo do Cruzeiro do Sul mostrou-se muito acolhedor às suas sementes do Roustainguismo, que desde os primórdios do movimento espírita brasileiro fez-se presente e atuante — e provocando graves discórdias entre os espíritas.
Diz a tradição que a primeira instituição espiritista no Brasil foi o Grupo Familiar de Espiritismo, fundado em Salvador, Bahia, a 17 de setembro de 1865, pelo jornalista Luiz Olímpio Teles de Menezes, que também foi o primeiro a editar um jornal espírita nacional: O Écho D’Além-Túmulo: monitor do Espiritismo no Brasil, cujo volume inicial veio a lume em julho de 1869. Pois já no número 6 deste periódico, referente a maio de 1870, o editor dá nota de uma importantíssima obra vinda da França, em 3 volumes de 600 páginas cada um, da qual acabara de receber um exemplar presentado pelo próprio autor. Diz Teles de Menezes tratar-se de “um trabalho considerabilíssimo, porquanto, pelo curso de admiráveis comunicações medianímicas, sempre sustentadas, explica e interpreta os Evangelhos, capítulo por capítulo, verso por verso. Esta obra extra-humana foi produzida pelos Espíritos e por sua ordem publicada, como sucedera com o Sr. Allan Kardec acerca da organização e publicação de O Livro dos Espíritos.” E faz questão de transcrever aos seus leitores trechos da carta que recebeu do autor: Roustaing:
Finalmente, o espírita baiano faz a propaganda roustainguista: “Recomendamos, portanto, a todos os Espíritas sérios a leitura dessa obra incontestavelmente de um mérito real; nela encontrarão, a par de alguns ensinos que, segundo a opinião autorizada do Sr. Allan Kardec, necessitam da verificação geral dos Espíritos, e, portanto dependentes da sanção futura, ensinos e desenvolvimentos em inteiro acordo com os princípios da doutrina espírita.”, inclusive reproduzindo o endereço e demais dados para aquisição da obra.
E sim, a “revelação da revelação” foi bem recepcionada pelos neófitos espíritas brasileiros, sendo estudada e colocada lado a lado das obras kardequianas pelas maiores instituições locais, desde o Grupo Confúcio, passando pelo Grupo Ismael até chegar à Federação Espírita Brasileira (FEB), cujo estatuto original consagrou o estudo regular de Os Quatro Evangelhos e o binômio Kardec-Roustaing como pilares da Doutrina Espírita. A própria FEB cuidou de publicar e comercializar diversas edições com a tradução dos volumes roustainguistas. Numa delas, aliás, de 1920, inserindo como prefácio aquele fatídico artigo ‘Resposta ao artigo de Allan Kardec’ da brochura dos discípulos de Roustaing.
Tudo isso, porém, não sem provocar polêmicas e dissidências: importantes pensadores espíritas nativos protestaram contra o enxerto roustainguista no meio kardecista brasileiro e muitos deles romperam com a FEB e, junto a novas instituições, puseram-se a trabalhar em favor da erradicação do movimento roustainguista entre os confrades espíritas. Estes são unânimes em afirmar que a “questão Roustaing” sempre foi o maior empecilho para uma melhor união entre os espíritas no Brasil.
Um dos mais ferrenhos críticos do roustainguismo foi o filósofo paulista José Herculano Pires, que assim descreveu o temperamento de Roustaing enquanto da análise do prefácio de sua obra:
Em sintonia com Herculano, que dizia que “Se Kardec é o bom senso, Roustaing é a falta de bom senso”, o historiador espírita Jorge Hessen exprime:
Nessa mesma linha, o pesquisador espírita Paulo Neto questiona a autenticidade dos Espíritos, ditos Moisés e os evangelistas, que inspiraram Os Quatro Evangelhos:
Numa tentativa de sanar esta polêmica e promover a tão sonhada unificação do movimento espírita brasileiro, formalizou-se o Pacto Áureo em 5 de outubro de 1949, cujo avanço concreto foi meramente o de a FEB reconhecer o direito facultativo das entidades adesas de admitir ou não a paridade do estudo das obras de Kardec e Roustaing, enquanto para a FEB esta paridade permanecia regular e oficial.
Posteriormente, Nestor João Masotti (presidente da FEB entre 2001 e 2013) tentou retirar J.-B. Roustaing dos estatutos da federação, porém, foi vencido por força judicial mediante uma medida cautelar impetrada pelo roustainguista Luciano dos Anjos para barrar a assembleia geral que estava decidida a excluir o estudo obrigatório de Os Quatro Evangelhos do antigo bastonário de Bordeaux. O impetrante alegou que o estatuto da FEB limita a sua reforma somente para as questões administrativas, "vedando os artigos de natureza básico-doutrinárias", apontando que a "cláusula Roustaing" seria uma cláusula pétrea "intocável".
Segundo uma nota oficial da FEB datada de 10 de agosto de 2019, em reunião extraordinária da Assembleia Geral da entidade, ocorrida na sua sede em Brasília, votou-se a edição do item I do Artigo 1° do seu estatuto, em que defina as finalidades da entidade, excluindo aí a referência a Roustaing como uma das bases fundamentais para o estudo espírita, atualizando para o texto seguinte:
Enfim, pelo menos burocraticamente, a FEB — a maior instituição espírita do mundo — passou a concentrar unicamente em Allan Kardec os fundamentos da Doutrina Espírita.
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