Maurice Lachâtre (Issoudun, França, 14 de outubro de 1814 - Paris, 9 de março de 1900) foi um influente intelectual, escritor e editor francês, também reconhecido como um importante ativista contra o absolutismo político e intolerância religiosa da Igreja Católica. Dentre outras obras, foi o responsável pela enciclopédia Novo Dicionário Universal. Amigo de Allan Kardec e declarado simpatizante do Espiritismo, ele é muito lembrado no movimento espírita pela relação direta com o célebre episódio Auto de fé de Barcelona, em 9 de outubro de 1861: era para Lachâtre que estavam endereçados os livros enviados por Kardec então confiscados e queimados naquele auto da Inquisição católica.
Maurice Lachâtre (1814 - 1900)
Filho do coronel Pierre Denis, barão de La Châtre, Maurice de Lachâtre (às vezes grafado La Châtre ou de La Châtre)) nasceu na comuna de Indre, mudou-se ainda novo para a capital francesa, onde conhece o professor Rivail (Allan Kardec) de quem, em 1839, vai ser sócio de um banco de troca (banque des échanges, espécie de agência financeira com o objetivo de facilitar transações comerciais, fornecer oportunidades ao comércio e à indústria, provendo a falta de recursos pecuniários através da troca de produtos em geral), sob o nome corporativo “Lachâtre e Rivail”, que também editava um periódico relacionado a esses negócios (Journal de la Banque des Échanges).
Journal de la Banque des Échanges editado por Lachâtre e Rivail
Ainda em Paris, então em grande efervescência cultural, Lachâtre torna-se um ativista da liberdade de expressão, do pensamento de vanguarda e em constante confronto com a Igreja e o regime de Napoleão III. Em meio a tudo isso, ele entra em evidência com seu livro História dos Papas (Histoire des Papes), de 1842, pelo qual denuncia mortes, assassinatos, adultérios, incestos e outros supostos crimes envolvendo vários pontífices.
Em 1849 ele publica anonimamente a polêmica obra A República democrática e social, Exposição dos princípios socialistas e de suas aplicações imediatas na França (La République démocratique et sociale. Exposition des principes socialistes et de leur application immédiate en France), mas não escapa ileso com a sequência de suas publicações: em 1857 é condenado a um ano de prisão por ultraje à moral pública e à igreja católica, dentre outros crimes, e é então preso por haver publicado a obra de Eugène Sue (1804-1857), Mystères du peuple (Mistérios do Povo) — que igualmente difundia ideias socialistas — além de ser condenado a pagar uma multa de 6 mil francos. A propósito desta obra, aliás, Maurice Lachâtre vai receber uma carta de Karl Marx (1818-1883) na qual o idealizador do Comunismo expressa o que pensa do Espiritismo: “Quanto à sua última obra [Mystères du peuple], não posso julgá-la porque dela só tive um primeiro contato. Mas ela está infestada, como o socialismo francês de sua época, de sentimentalismo. Ela mistura isso ao espiritismo que eu detesto.”
No ano seguinte Lachâtre publica o seu Dicionário Universal (Dictionnaire Universel), pelo que é novamente condenado por crimes semelhantes aos da primeira condenação, desta vez a cinco anos de reclusão, cuja sentença ele não cumpriu por ter-se refugiado na Espanha, estabelecendo-se na cidade de Barcelona, onde iria se ocupar como escritor e editor.
Simpatizando-se com as ideias espíritas, ele encomenda a Allan Kardec uma remessa de livros da nova doutrina. No entanto, mesmo tendo cumprido todas as exigências legais para tal, teve as obras confiscadas pelo bispo local, Dom Antonio Palau y Termens, que, evocando sua autoridade junto ao Tribunal de Inquisição, manda queimá-las em praça pública, o que se deu na manhã de 9 de outubro de 1861. O ato, contudo, acabou por provocar um maior interesse popular pela Doutrina Espírita e não impediu que as obras doutrinárias chegassem àquela região por outras vias.
Sobre esse atentado público, Lachâtre mais tarde escreveria:
Aquarela do Auto de Fé de Barcelona de 9 de outubro de 1861
Entretanto, a repressão da Igreja Católica acabou por resultar um efeito contrário esperado: ao invés de reter a marcha do Espiritismo em terras espanholas, fez ainda mais com que as luzes da Revelação Espírita se popularizassem:
Ousado e convicto de seus ideais, Lachâtre não se deixou abater com o Auto arbitrário e continuou ativo. A 27 de janeiro de 1869, reeditou sua obra A História dos Papas, que também foi destruída em nome do Santo Ofício católico.
Lachâtre retornou à França em 1864 e vai trabalhar com algumas livrarias. No ano posterior ele vai lançar sua nova enciclopédia, Novo Dicionário Universal (Nouveau Dictionnaire Universel) — a maior e mais completa enciclopédia até então publicada — da qual o próprio Allan Kardec será um dos colaboradores: neste volume consta o verbete com o nome do codificador espírita (Veja a seguir o tópico Kardec e Espiritismo por Lachâtre).
Durante a Comuna de Paris, em parceria com o jornalista e ativista político Félix Pyat, Lachâtre ele publica o jornal Vengeur. Com a derrota da revolta popular e a brutal reação do governo, ele volta a se exilar na Espanha, na cidade de San Sebastián, onde se dedica à sua Nova Enciclopédia Nacional (Nouvelle encyclopédie Nationale) e à primeira tradução para o francês de O Capital de Karl Marx, tradução essa revisada pelo próprio autor.
Depois de receber indulto, retorna a Paris em 17 de maio de 1879, onde iria publicar novas obras literárias, tais como História da Inquisição (Histoire de l'Inquisition) e uma reedição do Novo Dicionário Universal.
Depois de uma vida intensa e controversa, em que flertou com várias correntes ideológicas tais como o sansimonismo, o fourierismo, o anarquismo e o marxismo, ele desencarnou na capital francesa em 1900.
O Dicionário La Chãtre (Dictionnaire La Châtre), concluído em 1907, lhe foi atribuído postumamente, tendo como secretário de redação o jornalista anarquista André Girard (1860-1942).
Num testamento datado de 10 de agosto de 1862, ele registrou os seus últimos desejos: queria de morrer como viveu, um livre pensador e ligado à Doutrina Espírita; desejando que nenhuma cerimônia religiosa acontecesse em seu funeral, e que seu cortejo fosse como o de um homem pobre sem esplendor. Então dá instruções detalhadas para o embalsamamento de seu cadáver e termina determinando a distribuição de parte de seus bens: “em favor dos pobres e deserdados desse mundo, assim como para instituições humanitárias existentes ou a serem fundadas.”
Extrato do testamento de Maurice Lachâtre
Visto Lachâtre ter vivido ainda muitos anos mais, inclusive de retorno ao seu país, é muito provável que tenha refeito seu testamento, quiçá modificado algumas de suas vontades derradeiras, mas este documento de 1862 não deixa de espelhar uma parte significativa da essência lachatreana, principalmente sua preocupação com a condição social dos menos favorecidos.
Como é sabido, Maurice Lachâtre foi amigo e sócio comercial do prof. Rivail, de modo que, logicamente, ele bem conheceu as qualidades morais e as capacidades intelectuais daquele que viria a ser o codificador da Doutrina Espírita. Com isso, seu depoimento sobre Allan Kardec e sobre o Espiritismo é de grande valor historiográfico.
Com efeito, Lachâtre deixou um precioso registro histórico a esse respeito; aliás, pelo que sabemos, é da autoria dele o primeiro apanhado biográfico mais elaborado sobre Kardec: nas várias edições de sua enciclopédia, os verbetes “Allan Kardec” e “Espiritismo” permaneceram presentes, demonstrando a simpatia de Lachâtre pela nova doutrina, bem como pelo Magnetismo e pela Homeopatia. E em razão do nome de Kardec constar entre os colaboradores dessa enciclopédia, é muito provável que se ele próprio não foi o autor do verbete que traz o seu nome, no mínimo foi o seu revisor, corroborando as informações ali contidas; desta feita, é justo considerarmos que o tal verbete seja uma autobiografia kardequiana, pela qual narra seus anseios filosóficos desde a mocidade, na buscar por um ideal maior da sua vida em face da necessidade de uma reforma religiosa, apoiada sobre um fundamento absolutamente verdadeiro, que mais tarde ele encontraria na Revelação Espírita.
Foi a partir dos dados fornecidos pela obra editada por Lachâtre — com a participação direta de Kardec, enfatizamos — que Henri Sausse vai compor o seu opúsculo Biografia de Allan Kardec (Biographie d'Allan Kardec) — considerada a primeira obra biográfica mais robusta do fundador do Espiritismo — seguido por outros autores, tais como Anna Blackwell e José María Fernández Colavida.
Na edição de 1865 do Novo Dicionário Universal, tomo primeiro, edição publicada em 1865 — portanto, enquanto o pioneiro espírita ainda estava encarnado —, o enciclopedista permitiu ser publicado o seguinte sobre o amigo e ex-sócio comercial:
Sobre esta publicação, o pioneiro espírita escreveu uma resenha na sua Revista Espírita, sob o título ‘O Espiritismo tem lugar reservado na filosofia e nos conhecimentos usuais’, louvando efusivamente a iniciativa lachatreana:
Sua apreciação simpática sobre a Doutrina Espírita se confirma em sua Nova Enciclopédia Nacional, publicada em 1870, onde se lê:
Contudo, ao lado de sua simpatia pelo Espiritismo, preciso se faz reconhecermos que Lachâtre tentou conciliar conceitos francamente antagônicos ao ceder a ideologias ateístas e antirreligiosas, numa utopia muito particular de supor ser possível usar a Doutrina dos Espíritos para justificar uma revolução marxista, conforme é apreciado na pesquisa sobre sua vida e sua obra, publicada em Maurice Lachâtre: entre a publicidade e as controvérsias:
O espírito rebelde e revolucionário de Lachâtre era causa de preocupação para Kardec e sua esposa Amélie Boudet, conforme demonstrado em cartas trocadas pelo casal, em 1864, por ocasião de um retiro que o codificador espírita fez para se dedicar à composição de O Evangelho Segundo o Espiritismo; em dado momento, Kardec exclamará, quanto ao melhor destino para o anistiado Maurice: “Creio, como tu, querida Amélie, que seria melhor na Bélgica do que na França”. O fato é que Lachâtre retornou à Cidade Luz, mas comprometer os trabalhos kardequianos.
Rebeldias e revoluções à parte, Maurice Lachâtre não deixa de se figurar entre os benfeitores espíritas; não por acaso ele foi agraciado presidente de honra da União Espírita Francesa, conforme aparece no jornal daquela oficial entidade — O Espiritismo (Le Spiritisme), 2ª quinzena de março, 1884, pág. 2.
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