Misticismo é um termo de variadas acepções, acrescidas e alteradas com o tempo e em acordo com as tradições regionais, sendo utilizada no meio espírita para designar a crença em um poder sobrenatural e em práticas alegadamente úteis para evocar esse pretenso poder, aproximando-se assim da ideia de superstição, magia e de feitiçaria; nesse contexto, o elemento básico do misticismo é o “mistério sagrado”, donde resulta a coisa mística, que transcende a razão, portanto, irracional e inexplicável. O misticismo é comumente usado como base de sustentação das religiões tradicionais para tentar, na conta de uma “mística divina”, preencher a lacuna ocasionada pela falta de lógica de suas doutrinas; o Espiritismo por sua vez, caminha pelo exemplo das ciências, no sentido de fundamentar-se na racionalidade, em oposição à significação moderna do ato de mistificar, qual seja, tentar explicar um fenômeno desconhecido com suposições ilógicas e misteriosas, pretender ritualizar valores espirituais ou mesmo fraudar e iludir, por exemplo, imitando uma manifestação mediúnica.
A palavra misticismo vem do grego μυστικός, cuja transliteração é mystikos e significa basicamente “um iniciado em uma religião de mistérios”. Em sua acepção original, define-se como a busca de uma comunhão com a realidade maior (a espiritualidade), com a verdade das coisas, com Deus e outras ditas divindades, através de uma experiência direta ou intuitiva — o que por vezes é descrito como a religião natural, ou religiosidade, no seu sentido mais puro; nesse contexto, essa comunhão, essa experiência mística mais profunda, se dá através de uma iluminação (também conhecida como contemplação, êxtase, insight, epifania etc.), que pode ser alcançada pela combinação da perseverança do indivíduo na meditação em conjunto com a bondade de Deus em se revelar. Desta feita, aquele que alcança esse estágio e penetra no “segredo divino” — ou mistério — é um autêntico místico, isto é, um iniciado.
O pioneirismo dessa tese no Ocidente é atribuído às obras de Dionysius, o Areópago (supostamente, um monge bizantino do século VI que se passava por Dionísio, o ateniense convertido ao Cristianismo por São Paulo, como aparece em Atos dos Apóstolos, 17: 34). Um dos nomes mais recorrentes entre os místicos é o do filósofo germânico Jacob Boehme, que definiu o misticismo como um tipo de religião que enfatiza a atenção imediata da relação direta e íntima com Deus, ou com a espiritualidade, com a consciência da Divina Presença, pretendendo que o misticismo seja a mais pura e intensa expressão de religiosidade — a religião verdadeira.
O misticismo é então uma variante das mais antigas crenças, perpassando por todas as grandes culturas espiritualistas e em cada uma delas imprimindo e absorvendo concepções diversas, com forte presença nas doutrinas secretas dos iniciados do Antigo Egito, dos gregos (especialmente no culto dos Mistérios dos Elêusis), pelos ocultistas da Cabala judaica, do Sufismo islã, do hinduísmo e do budismo.
Na sua proposta genuína, a prática mística consiste em alcançar a graça da iluminação transcendental (de Deus, deuses, mãe natureza, potência cósmica, consciência universal etc.) através da meditação — sem intermediários. Mais tarde, novas versões foram surgindo, dentre as quais a que pretende que essa iluminação se dê pela intimidade do indivíduo com a natureza, desde quando então começou-se a incorporar cultos, rituais, símbolos e elementos sagrados.
Logo, além da interação com o divino poder e a contemplação desse sobrenatural, alguns místicos inclinaram-se a propósitos diversos da magia e da feitiçaria — por exemplo, para fins de cura, autoproteção e magias endereçadas a terceiros (para bênçãos ou maldições). Doravante, adentrando no campo do esoterismo, alguns místicos passaram a fazer uso de pedras, ervas, banhos, beberagens, amuletos, talismãs, rituais litúrgicos, sacramentos, sacrifícios etc.
As religiões tradicionais se valem das ideias místicas para fundar seus dogmas e doutrinas, na ausência de uma lógica filosófica. Consideram mesmo que o mistério e a força sobrenatural da divindade (ou equivalente) são elementos essenciais para colocá-la acima do homem. E que o ato de “quebrar as regras da natureza”, através do milagre, também consista numa necessária manifestação de poder superior. Por esse valor, o mistério tenta “explicar” o que é inexplicável, por exemplo: quando o Judaísmo defende a criação do mundo em sete dias (ou seis, se considerarmos que no sétimo dia Javé somente descansou), ainda que diante das provas geológicas que apontam para bilhões de anos de existência da Terra; quando o Catolicismo sustenta a virgindade de Maria, mesmo em face do nascimento de Jesus.
Muitas crenças místicas ainda adotadas por certas religiões conservam ideias, ou parte delas, das antigas mitologias — que, basicamente, eram “explicações” de fenômenos naturais meramente poéticas, adornadas de eventos fantásticos e espetaculosos intencionalmente colocados tanto para entreter (já que se tratava de pura arte) quanto para causar espanto (como recurso didático, para despertar atenção e fácil memorização). A interpretação literal dos antigos mitos foi o que deu ensejo a muitas superstições e cultos primitivos.
Especialmente no século XV, surgiu na Europa um movimento intelectual que preconizou a recuperação dos valores e modelos da Antiguidade greco-romana, com fortes reflexos nas artes, na arquitetura e no meio social em geral: foi a chamada Renascença, ou Renascimento; uma das suas características consistia em valorizar um saber crítico voltado para um maior conhecimento do homem e uma cultura capaz de desenvolver as potencialidades da condição humana, em oposição — ou pelo menos em contrabalanceamento — à tradição medieval, que profanava todo a vida material e pregava uma devoção quase que absoluta aos valores espirituais em conformidade com os preceitos religiosos.
Dentro do pensamento renascentista, havia também um movimento que buscava resgatar a sabedoria dos antigos com relação aos mistérios espirituais para além da tradição bíblica, indo beber da fonte das diversas doutrinas secretas que permeava as culturas religiosas (notadamente da cabala judaica e do sufismo islâmico) e mesmo a filosofia clássica (principalmente de Sócrates e Platão). Nesse contexto, o conceito de misticismo ganhou uma nuance mais de conhecimento mesmo do que de esoterismo e magia: a motivação geral era o respeito àquilo que é misterioso, ou seja, desconhecido, porém fomentada pela ideia de que o mistério da espiritualidade poderia ser até certo ponto compreendida e explicada pela própria Filosofia — e, portanto, fora da exclusividade das luzes das ditas autoridades eclesiásticas. Foram expoentes dessa nova escola mística gênios como Marcílio Ficino (1433 - 1499) e Pico dela Mirandola (1463 - 1494).
Esse movimento naturalmente foi duramente combatido tanto pelo catolicismo quanto pela reforma protestante, em razão do evidente conflito de interesse, visando o controle da interpretação das concepções acerca da espiritualidade. Do recrudescimento do clero contra esse movimento por uma maior liberdade de pensamento brotou um cisma generalizado de ideias do qual subsequentemente, veio o movimento iluminista, caracterizado pela centralidade da ciência e da racionalidade crítica no questionamento filosófico e pela recusa sistemática a todas as formas de dogmatismo religioso; o resultado prático do chamado Iluminismo foi o estabelecimento de uma corrente puramente cientista e antagônica à toda ideia de que espiritualidade possa existir, ou que, existindo, possa ter qualquer influência concreta no mundo físico e na vida humana; por sua vez, os iluministas alimentavam a pretensão de poder explicar tudo pelas “luzes” do seu saber racional. A partir disso, a concepção de misticismo ganhou as feições modernas e pejorativas de um sobrenatural supersticioso, dito movido pela ignorância e fanatismo.
É com essa faceta preconceituosa e arrogante dos cientificistas que o século XIX (quando eclodiu a Revelação Espírita) vai abordar o misticismo; então, precisando adotar essa conceituação, a codificação kardequiana se estabelece em oposição às definições místicas, frisando que o Espiritismo é uma doutrina fundada na lógica e na razão, além de ser completamente destituída de um caráter secreto, iniciático sacramental e elitista:
Na formatação do Espiritismo, Allan Kardec então rejeita peremptoriamente qualquer tipo de comparação e aproximação da sua doutrina com o misticismo:
Em suas pesquisas acerca dos fenômenos espirituais, Kardec asseverava que eles não tinham nada de sobrenatural, que não violavam as leis da natureza, tal como se pretende entender por milagre ou coisa maravilhosa; dizia ele que o contato mediúnico e todas as manifestações espirituais estão dentro da naturalidade dos eventos, sendo o espanto dos homens apenas por ignorância dessas leis e que tal espanto se extingue simplesmente quando essas forças naturais passam a ser apreciadas pela ciência:
Portanto, cabe ao Espiritismo contribuir com o conhecimento racional das leis da natureza, desmistificando as ideias primitivas:
O combate espírita ao misticismo implica em reconhecer as diversas faces da mistificação.
O ato de mistificar, segundo a codificação espírita, é explicitamente enganar ou enganar-se, podendo ser mistificador: o falso médium (aquele que simula uma manifestação espiritual, embusteiro, charlatão), o médium que falseia as comunicações que recebe ou o Espírito que engana o médium (por exemplo, fazendo-se passar por uma identidade mais respeitável ou ditando falsos ensinamentos). Nesse particular, como precaução a esse infortúnio, temos em O Livro dos Médiuns o capítulo ‘Contradições e mistificações’, que em dado ponto nos adverte:
Analisando a prática mediúnica em seu tempo, Kardec vai se deparar com a ignorância e imprudência de certos médiuns que utilizavam de elementos místicos para decorar seus “dons” e advertir sobre esse engano:
O codificador espírita exemplifica um caso clássico de mistificação espiritual, tomando como base a insistência do médium em perscrutar revelações e predições espetaculosas e com exatidão de local e data de evento:
José Herculano Pires foi uma das vozes mais ativas na advertência ao movimento espírita contra a incidência de misticismos na prática da nossa doutrina; observando a herança secular das religiões anteriores presente no inconsciente dos neófitos espíritas, o filósofo detecta esse nocivo sincretismo e assevera:
As práticas místicas, entre outras negatividades, assumem um caráter hipnotizante — seja puramente pela curiosidade natural, seja pela atração estética de seu ritualismo, seja pelos interesses (poder, proteção etc.) — que, no mínimo, ocupa, no cotidiano de seus adeptos, o tempo que bem poderia ser preenchido com ações positivas para seu verdadeiro crescimento espiritual. Em face disso é que o Espírito Emmanuel acusa esse “magismo” de “ideias escravizantes”:
Outra forma de misticismo lembrada por Kardec diz respeito à maneira como muitas vezes o igrejismo trata o próprio conceito doutrinário de sua fé; ele aponta, como exemplo, a deformação do cristianismo promovido pelos religiosos ditos cristãos:
Indo ao contrário dos fundamentos espíritas, a mistificação torna-se, em suma, um dos mais perigosos inimigos do Espiritismo, justamente por deformá-lo, remetendo sua doutrina ao padrão de crendices atávicas, o que acaba afastando as pessoas de intenções sérias e comprometidas com a racionalidade. O espírita, especialmente aquele dotado de ostensiva mediunidade — porque este tem melhores recursos de instrução espiritual — que incorpora elementos místicos à sua prática espírita ilude a si mesmo e acaba por semear o joio da desconfiança quanto à seriedade da doutrina.
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