Videira Espírita, ou Cepa Espírita, é um desenho mediúnico produzido pelos Espíritos colaboradores da codificação do Espiritismo e entregue a Allan Kardec, com a instrução expressa para que a ilustração fosse reproduzida em O Livro dos Espíritos, como o emblema do trabalho do Criador (Deus), estando nela representados o princípio material (a cepa) e o princípio espiritual (o vinho) dos quais, unidos, brota o ser individualizado e encarnado: a alma (o bago). Com efeito, o desenho foi inserido nos Prolegômenos na referida obra. De acordo com uma certa interpretação, o fruto escolhido (uva) é uma referência de ligação do Espiritismo (Terceira Revelação) com as duas grandes revelações precedentes (Judaísmo e Cristianismo, respectivamente) em cujas tradições a videira tem um importante simbolismo. A imagem da videira tem sido usada informalmente como uma espécie de logomarca da Doutrina Espírita.
Por ocasião dos estudos e pesquisas iniciais da Revelação Espírita e já em preparação para o lançamento de O Livro dos Espíritos, a obra literária inaugural da nova doutrina, o codificador espírita (Allan Kardec) recebeu — provavelmente no ano de 1856 — uma comunicação mediúnica (a identidade do médium é desconhecida) assinada por várias entidades espirituais (dentre os quais São João Evangelista, Santo Agostinho, Sócrates, Platão e o Espírito Verdade) cujo texto seria utilizado dentro da sessão dos ‘Prolegômenos’. No ínterim desta comunicação, um determinado trecho assim se expressa:
De fato, em anexo àquela mensagem, os Espíritos produziram um desenho, conforme Kardec assegurou através de uma nota de rodapé, explicando: “A cepa aqui colocada é o fac-símile daquela que foi desenhada pelos Espíritos.”
A Videira Espírita reproduzida na página original dos Prolegômenos
Como a própria comunicação espiritual inserida nos Prolegômenos explica, o desenho da videira é uma representação gráfica do trabalho da Divindade. O símbolo é composto de dois elementos básicos, dos quais resulta o fruto:
O primeiro elemento é a cepa, isto é, o ramo da parreira, da qual brotam os frutos, significa o princípio material, que gera os corpos físicos, e, no caso em especial aqui, o corpo humano;
O segundo elemento é o licor, isto é, a seiva, o líquido contendo a essência do vinho ou do suco da uva, seu sabor e seus nutrientes, significa o princípio espiritual, que gera as individualidades, quer dizer, os Espíritos, os seres inteligentes da Criação, as consciências, as pessoas;
A união destes dois elementos então faz brotar o bago (a uva), que significa a alma, isto é, o Espírito encarnado. Nesse contexto, o ser humano é usado como referência do ápice da obra divina, o fruto mais sublime de toda a Criação, porque ele é, de fato, de tudo o que conhecemos em nosso mundo físico, a criatura mais elevada da natureza.
A materialização do fruto (a alma) aqui expressada, também valoriza a Lei de Reencarnação — um dos conceitos fundamentais do Espiritismo —, pela própria necessidade que os indivíduos em aperfeiçoamento têm de se manifestar e assim trabalhar pela sua evolução. Por esta razão é que aquela mesma mensagem espiritual vai dizer em seguida: “O homem purifica o espírito pelo trabalho, e tu sabes que é somente pelo trabalho do corpo que o espírito adquire conhecimentos”.
Em outro trecho da sua obra, Allan Kardec vai desenvolver a explicação da alegoria do vinho no processo de aperfeiçoamento espiritual:
O Espiritismo se destaca por ser uma doutrina que, embora tenha efeitos religiosos, é desprovida de elementos litúrgicos, rituais, templos sagrados, hierarquia clerical e símbolos cabalísticos. A representação gráfica da cepa espírita não constitui uma exceção a essa pureza doutrinária, pois não contém nenhum elemento místico que enseje que este emblema seja usado como amuleto, talismã ou qualquer elemento de uma fórmula sacramental e coisas afins.
Seu simbolismo tem o valor de uma simples mensagem intelectiva, conquanto expressa artisticamente, e como tal, constituída de elementos típicos da arte (criatividade, expressão de beleza, emotividade etc.).
A referida simplicidade fica patente ao considerarmos que a não reprodução do desenho ou mesmo a incompreensão de seu significado não implica absolutamente num prejuízo fatal para os propósitos da Doutrina Espírita. Entretanto, pelo zelo que tiveram as personalidades espirituais que o transmitiram a Allan Kardec, com uma ordem expressa para colocá-lo no livro inaugural do Espiritismo, devemos deduzir que este emblema contenha uma mensagem intelectiva realmente importante, e talvez a explicação transcrita nos Prolegômenos não encerre todo seu significado.
Dentre as possíveis significações não explicitadas na definição que os Espíritos deram para o desenha da videira está a de que esta arte simbolize uma ligação intrínseca entre as três grandes revelações da Lei de Deus: Judaísmo, Cristianismo e Espiritismo:
A definição dos mentores da obra kardequiana de que a criatura humana (Espírito encarnado) é a representação máxima do trabalho divino realmente coincide com a tradição judaico-cristã, que afirma que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, e que o tornou superior dentre toda a criação (Gênesis, 1:26-27).
E quando para escolher o tipo da fruta emblemática para simbolizar a criatura humana, certamente não foi por acaso que os Espíritos superiores optaram pela uva: a videira, o vinho e a uva são elementos clássicos e de forte simbolismo dentro das tradições do Judaísmo e do Cristianismo, não desprezados pela Doutrina Espírita. A cepa espírita ilustra a vinculação entre Moisés, Jesus e Kardec.
Na cultura mosaica, os mencionados elementos permeiam todo o Antigo Testamento bíblico. Entre tantas passagens, a videira é usada como alegoria da “Terra da Promissão”: depois da fuga da escravidão no Egito, atravessando o deserto rumo às terras de Canaã, com a esperança de estabelecer ali a santa nação de Israel, Moisés envia dois espiões para ver como eram aqueles campos, se eram férteis ou estéreis; como eram seus habitantes etc. Na volta, os espias trouxeram amostras do fruto que se tornaria sagrado:
Retorno dos espiões da Terra da Promissão, de Gustave Doré (1832-1883)
Igualmente no Novo Testamento, a uva, a videira e a vinha estão fartamente presentes nas narrações evangélicas, inclusive nas parábolas contadas pelo próprio Cristo, que, aliás, segundo a transcrição do apóstolo João Evangelista (O primeiro dos Espíritos que assinaram a mensagem inserida nos Prolegômenos de O Livro dos Espíritos), declara: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o lavrador.” (João, 15:1) Além disso, não parece nada fortuito o episódio da transformação da água em vinho — narrada também por São João Evangelista, e descrita como o primeiro milagre de Jesus (João, 2:1-11): no nosso mundo, a água é o líquido mais simples (lembrando a condição inicial do Espírito), enquanto o vinho é a bebida mais sofisticada (simbolizando a perfeição para qual o Espírito se transmuda pelo curso da evolução).
Deparamo-nos na Codificação Espírita com a mesma simbologia, sem o menor constrangimento. Em O Evangelho segundo o Espiritismo, além das transcrições dos Evangelhos bíblicos, a obra está recheada de menções alegóricas no mesmo gênero, por exemplo, numa comunicação espiritual assinada por um “João”, que assevera: “Trabalhar para os pobres é trabalhar na vinha do Senhor” (cap. XIII, item 16). Noutra, o anjo guardião Constantino chama a obra divina naturalmente de “vinha” (cap. XX, item 2). E bem na sequência, eis o amigo espiritual Henri Heine a dizer, comentando a parábola cristã dos trabalhadores da última hora, ratificando o vínculo entre as tradições judaica e cristã ao Espiritismo:
A peça alegórica utilizada na obra kardecista não é nada estranha para a cultura humana. A uva, fruto da videira, é a típica matéria-prima do vinho — a bebida sagrada de várias religiões e mitos.
Na Grécia Antiga, contava-se que o vinho (também chamado de néctar) era a bebida sagrada dos deuses e o que lhes eternizava a vida. A mitologia grega consagrou o “deus do vinho” como sendo Dioniso — aquele que ascendeu do Hades (inferno) para o Olimpo (paraíso), correspondendo aos dois termos dos quais seu nome é formado: dyu = céu, espírito + nisa = água, noite, que lidos reversamente dão o sentido de alguém que emergiu da simplicidade (água) e da escuridão (noite) em direção ao alto (céu) e à plenitude (espírito). Sua versão na mitologia romana é Baco, igualmente deus do vinho e do prazer.
Em variadas correntes religiosas, na mais remota Antiguidade, esta bebida é um elemento sagrado e tomada na busca pela iluminação espiritual. Ela também está presente na cerimônia judaica Kiddush (transliteração do hebraico קידוש, equivalente à "santificação"), que é a bênção sagrada recitada sobre o vinho ou suco de uva para santificar o Shabat. Na teologia católica e de algumas igrejas protestantes e reformistas, o vinho é usado junto com o pão na consagração Eucaristia, um ritual que prega a fé na substanciação desses elementos respectivamente no sangue e no corpo de Jesus Cristo, constituindo-se em um dos sacramentos essenciais para a salvação da alma.
Fora o caráter místico, a fruta-símbolo escolhida pela espiritualidade atende às expectativas de um símbolo universalista, já que esta iguaria é cultivada data para mais de 6.000 a.C. e atravessa as mais tradicionais civilizações, cujo consumo alcança praticamente todas as partes do planeta; portanto, um fruto global, bem espalhado, como aliás acontece com as videiras, pela característica própria das plantas trepadeiras das quais se figura a parreira.
A sofisticação do vinho na cultura mundial é tanta que existe até uma ciência específica para o tratamento da sua produção, conservação e consumação: Enologia.
No idioma português, o vocábulo uva é sinônimo de algo sublime. Segundo o Dicionário Houaiss (versão eletrônica 3.0, de 2009), a quarta significação desta palavra é “qualquer coisa muito bonita”, e dá um exemplo: “comprou um sapato que é uma uva”.
A arte da cepa tem sido bastante aplicada, dentro e fora do movimento espírita, como uma espécie de logomarca do Espiritismo; no entanto, como uma simples representação gráfica, isto é, sem nenhum caráter de ícone sagrado ou insígnia oficial. Por outro lado, essa usagem provavelmente é fartamente feita sem o devido conhecimento do seu significado.
Alguns detalhes relacionados à reprodução do desenho da cepa espírita por Allan Kardec nos chamam a atenção e merecem a menção:
Esta é a única figura que consta nos livros doutrinários de Allan Kardec (na Revista Espírita de agosto de 1858, Kardec reproduz um desenho mediúnico da casa de Mozart em Júpiter, mas sem qualquer significação especial tal como há na videira espírita);
É uma ilustração tratada com muita atenção pelo Espíritos da Codificação, pois além de desenhá-lo mediunicamente, eles orientam Kardec como colocá-la no início do livro que veio inaugurar o Espiritismo no mundo;
O primeiro Espírito a assinar os Prolegômenos é João Evangelista, o mesmo que registrou que o Cristo é a verdadeira videira (João, 15:1) e, também, o que registrou a promessa do Mestre que enviaria o Consolador (João, 14:16-17);
A mensagem espiritual sobre o dito emblema, endereçada a Kardec, indicava expressamente que a imagem fosse posta na cabeceira do livro. No entanto, ela foi reproduzida na seção dos Prolegômenos, que vem depois da Introdução. A "não obediência" do codificador a essa indicação pode ter sido pela intenção de manter a figura mais próxima da comunicação mediúnica que a descreve, ou talvez devido questões técnicas, afinal, em seu tempo, os recursos gráficos eram limitados e caríssimos. Em todo o caso, este “incidente” serve para nos instruir que, se fosse admitido qualquer caráter sacrossanto, não importasse como, o desenho deveria figurar-se na folha de rosto do livro, exatamente como indicado pelos Espíritos — o que absolutamente não se deu;
A ilustração foi reproduzida na primeira edição de O Livro dos Espíritos em fac-símile, ou seja, como cópia fiel do original, segundo a anotação do autor do livro. Todavia, a partir da segunda edição, a primeira página dos Prolegômenos recebeu alterações e, nisso, a gravura da videira não vai aparecer exatamente como na obra de estreia: a arte é a mesma, porém recortada e ligeiramente ampliada — outra indicação de desprendimento de qualquer formalidade. O motivo para esta reformulação não foi informado e, ainda, a mesma nota de rodapé citando o fac-símile permaneceu sem modificação. Novamente, podemos observar o desprendimento kardequiano quanto à forma, conquanto preservando a mensagem — o que realmente importa;
As duas versões da primeira página dos Prolegômenos
O desenho original e a segunda versão, recortada e ampliada
Uma possível mensagem implícita na videira desenhada pelos Espíritos é a de uma reafirmação do vínculo do Kardecismo com as tradições religiosas precedentes (principalmente o Judaísmo e o Cristianismo) tendo a espiritualidade previsto a forte resistência — e até mesmo o combate — de grande parte dos simpatizantes e aderentes do movimento espírita ao próprio caráter religioso contido no Espiritismo: uma forma de os guias espirituais literalmente “desenharem” o que a Doutrina Espírita é.
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