Codificador espírita, ou Codificador do Espiritismo, é uma expressão bem usual no movimento espírita em alusão direta a Allan Kardec, no sentido de que foi ele quem codificou o Espiritismo, estabelecendo assim os fundamentos da doutrina através de um conjunto de obras literárias, conjunto esse então conhecido como Obras Básicas do Espiritismo e que forma o que se convencionou chamar de Codificação do Espiritismo, ou Codificação Espírita. A exatidão desse epíteto por vezes é questionada, mas um estudo linguístico apurado nos leva a considerarmos que o qualificativo codificador, embora não seja perfeito e suficiente para contemplar todo o valor do trabalho de Kardec, nada tem de inadequado desde que se preserve o devido contexto: Allan Kardec é o codificador espírita na acepção de que foi ele quem estruturou e publicou o conjunto basilar de conhecimentos e instruções que forma a Doutrina Espírita.
Allan Kardec, o Codificador do Espiritismo
A palavra codificador é um qualificativo para o verbo codificar, que, por sua vez, têm vários significados, dentre os quais destacamos três, que diretamente nos interessa para a análise aqui em questão:
Permeando esta última acepção, temos que uma doutrina é uma espécie de código, no sentido de que ela estrutura um conjunto de conceitos e instruções práticas acerca de uma ideia central; estabelecer uma doutrina é, portanto, codificá-la, tornando compreensíveis os seus fundamentos. Neste contexto, faz jus a Allan Kardec o título de codificador do Espiritismo, visto que, de fato, ele é o artífice da Doutrina Espírita, para cuja formatação ele também atuou como um compilador ao coletar as mensagens e instruções espirituais recebidas pelos médiuns colaboradores, tal como a primeira acepção aqui referida para o verbo codificar. Destarte, o primeiro resultado de seu trabalho foi O Livro dos Espíritos — que bem poderia ser intitulado “O Código dos Espíritos” — que, aliás, traz na folha de rosto a designação: “Contendo os princípios da Doutrina Espírita... segundo o ensinamento dado pelos Espíritos... recolhidos e ordenados por Allan Kardec”.
Convém anotar que o ato de codificar também se atribui a outros significados diferentes que não têm relação nenhuma com as duas acepções aqui mencionadas. No jargão da informática, por exemplo, significa programar, escrever linhas de códigos (de um software, arquivo etc.). No ramo de telecomunicações, codificar é estabelecer ou selecionar padrões e formatos de processamento de sinais de transmissão (exemplos: formatos de televisão NTSC e PAL-M, formato de áudio mp3, vídeo mp4 etc.). E ainda tem o caso de criptografia (kryptos = oculto, secreto + graphia = escrita), que consiste em criar e utilizar um código especial para esconder uma mensagem mediante a correspondência de chaves utilizáveis para decodificá-la, ou seja, converter a mensagem do código oculto para uma linguagem acessível. Estes casos, portanto, nada tem a ver com o trabalho da codificação do Espiritismo.
Ocasionalmente, pode-se encontrar no meio espírita certa resistência quanto à justeza do adjetivo codificador para descrever a obra de Allan Kardec na formatação da doutrina dos Espíritos, havendo até quem entenda que esse epíteto seja inadequado, sob a alegação de que essa expressão diminui o valor do trabalho do pioneiro espírita, isto no contexto de que se possa supor Kardec como um mero compilador, alguém que simplesmente coletou uma série de dados e instruções dos Espíritos e os publicou, na condição de um editor qualquer — o que não retrata o conjunto da obra do codificador espírita. Como se sabe, compilar é codificar, mas codificar não é somente compilar.
A ideia que se pode fazer de Kardec como um simples secretário dos Espíritos, alguém que apenas transcreve uma composição alheia, é muito provavelmente uma interpretação literal das várias citações feitas pelo próprio Kardec pelas quais fazia questão de atribuir aos Espíritos toda a autoria e o mérito do Espiritismo, como nessa oportunidade:
Bem como ele ratifica no livro A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo:
A modéstia de Kardec lhe impelia a recusar qualquer mérito pessoal, no entanto, sabemos que ele também foi protagonista no processo de elaboração da doutrina; mesmo em O Livro dos Espíritos, vê-se que é de sua autoria grande parte do conteúdo, fora as perguntas, e até na composição das respostas há a mão do codificador.
Se em O Livro dos Espíritos a palavra direta dos benfeitores espirituais — através de recortes das mensagens mediúnicas — representa boa parte do conteúdo da obra, nas demais publicações do mesmo autor essas transcrições formam uma fatia pequena, enquanto o grosso é composição de Kardec, desenvolvendo sua própria interpretação de acordo com as ideias oferecidas pelos mentores da codificação espírita.
Conquanto modesto, o próprio Allan Kardec recusou o papel de mero compilador dos Espíritos: em 1861, ele escreve ao jornal La Gironde em resposta a um artigo publicado por este mesmo periódico (4 de maio, 1861) e assinado por Octave Girand, que dizia o Espiritismo ser invenção de Kardec. Em dado momento, o codificador explana:
Noutra oportunidade, analisando seu papel no desenvolvimento da Doutrina Espírita, Kardec vai exprimir:
Ora, é certo que o Espiritismo não poderia depender exclusivamente de uma determinada pessoa e que, no lugar de Allan Kardec, outro missionário poderia ser encarregado de cumprir a missão de codificador, no entanto, não qualquer um, mas somente alguém intelectualmente habilitado para ordenar didaticamente todo aquele conteúdo mediúnico — tal a habilidade do Prof. Rivail (Kardec) — além de qualificado moralmente e comprometido com tal desiderato a ponto de fazê-la a obra de toda uma vida "até o último dia" — como se deu com Kardec.
Ainda tratando de definições, temos que, como codificar é também elaborar qualquer mensagem dentro de uma linguagem (código linguístico), podemos chamar Allan Kardec de codificador no sentido de que ele desenvolveu suas próprias composições. Em O Céu e o Inferno, por exemplo, encontramos um verdadeiro tratado filosófico e teosófico claramente de autoria kardequiana, conquanto embasado nos ensinamentos dos amigos invisíveis, que contribuíram mais diretamente com esta obra através das comunicações copiladas e publicadas na segunda parte do livro.
Frequentemente lemos na obra kardequiana menção às limitações da linguagem, pelo que vamos encontrar apontamentos que destacam o valor do sentido da mensagem e despreocupação com a forma linguística, como neste extrato seguinte:
Desta maneira, compreendemos que, se a adjetivação codificador não abrange nem define perfeitamente a inestimável contribuição de Kardec na formatação da Doutrina dos Espíritos, por outro lado não lhe tira o mérito que lhe cabe, considerando todas as acepções aplicáveis a este título e preservando o sentido amplo de suas atividades — seja codificador no sentido de compilador dos ensinamentos dos Espíritos, seja codificador no sentido de elaborador de suas próprias ideias, na interpretação dos conceitos oferecidos pela espiritualidade, como acentuou o estudioso espírita Deolindo Amorim:
Fora do círculo dos espíritas propriamente ditos, Allan Kardec era comumente citado como o “fundador do Espiritismo” — o que certamente o deixaria bastante contrariado. Já entre os confrades, o título mais comum empregado era o de Mestre (Maître, em francês), mas pouco a pouco, a concepção de codificador (codificateur) começou a ganhar força a partir da interpretação de que Kardec codificou a revelação espírita. Em 1880, na Revista Espírita do mês de maio, vamos encontrar Gabriel Delanne, grande apóstolo do Espiritismo da primeira geração, saudando Kardec nos seguintes termos (grifos nossos):
O mesmo Delanne, agora no jornal O Espiritismo, edição de março de 1884, volta a usar o verbo codificar dentro do mesmo contexto (grito nosso):
Também Henri Sausse, outro valoroso discípulo kardecista das primeiras gerações espíritas, vai fazer uso do referido verbo (grifo nosso):
A exata expressão Codificador do Espiritismo (Codificateur du Spiritisme) vai aparecer na Revista Espírita de dezembro de 1927 numa nota colhida em uma revista brasileira (Rio-Psychico) dando conta da nomeação de uma rua na cidade do Rio de Janeiro em homenagem a Kardec (grifo nosso):
No Brasil, a mais antiga menção ao referido epíteto que conhecemos é de 3 de outubro de 1882, registrada num folheto de polianteia (miscelânea de homenagens) em comemoração a mais um aniversário de nascimento do mestre espírita, publicado por uma sociedade espírita do Município de Campos dos Goytacazes, interior do Estado do Rio de Janeiro (grifo nosso):
Na tradicional revista Reformador, da Federação Espírita Brasileira, a primeira citação do adjetivo aqui tratado encontra-se num texto de Manoel Fernandes Figueira, médium e um dos fundadores da FEB, na edição datada de março de 1891 (grifo nosso):
A mesma Reformador volta a utilizar o termo codificador do Espiritismo como perífrase em referência a Allan Kardec, reproduzindo uma notícia oriunda da pátria do homenageado, pela ocasião do primeiro centenário de seu nascimento:
Desde então, o adjetivo virou uma alcunha frequentemente usada pelos estudiosos espíritas no Brasil e então o fruto literário do trabalho de Allan Kardec passou a ser designado como codificação espírita, como se lê em publicações diversas, tais como em Introdução à Filosofia Espírita do filósofo confrade José Herculano Pires (grifo nosso):
Herculano não tem o menor receio de usar codificador como antonomásia a Kardec, como o faz abundantemente, por exemplo, em O Espírito e o Tempo, de que tiramos o seguinte trecho (grifo nosso):
O renomado estudioso espírita Hermínio C. Miranda foi outro que igualmente não hesitou usar os termos em questão, como pode ser visto no recorte adiante do clássico Diálogo com as Sombras:
Das grandes personalidades da espiritualidade que militam no meio da nossa doutrina, desconhece-se qualquer reprovação aos termos expostos no contexto aqui apresentado. Em O Consolador, por exemplo, o benfeitor Emmanuel, através da mediunidade de Chico Xavier, ressalta (grifo nosso):
Na mesma obra, agora na questão 369, Emmanuel se refere a Kardec expressamente como “Codificador”.
Em suas obras, Allan Kardec não denomina seu trabalho espírita de “codificação”, mas deixa subentendida essa ideia. Ele aqui e acolá vai tomar a palavra código pelo significado de conjunto de leis, ou instruções filosóficas e religiosas. Nesse contexto, codificar equivale a legislar (formular leis) ou compilar leis (reunir e divulgar). Em O Livro dos Espíritos, ele comenta (grifo nosso):
Em O Céu e o Inferno, ele discorre detalhadamente da tese espírita sobre as leis divinas quanto à destinação da humanidade, que ele descreveu como “Código penal da vida futura”. Em dado momento, ele exprime:
Nesta mesma obra Kardec fala que Jesus veio modificar a lei mosaica fazendo da sua lei o “código dos cristãos” (O Céu e o Inferno, 1ª parte, cap. XI, item 6). Diz ainda: “Tudo tinha sua razão de ser na legislação de Moisés, uma vez que tudo ela prevê em seus mínimos detalhes, mas a forma, bem como o fundo, adaptava-se às circunstâncias ocasionais. Se Moisés voltasse em nossos dias para legislar sobre uma nação civilizada, decerto não lhe daria um código igual ao dos hebreus.” (Idem, 1ª parte, cap. XI, item 5).
Temos então que a Doutrina Espírita é também um conjunto de leis, ou melhor: instruções morais, do qual Kardec é o compilador. Com isso, ele vai apresentar O Evangelho segundo o Espiritismo da seguinte maneira:
Com efeito, podemos dizer que há um "código espírita", qual seja o conjunto de leis, ou melhor, instruções, que os Espíritos vieram nos oferecer, compondo assim a Terceira Revelação, em sequência às outras duas grandes revelações da lei de Deus, assinaladas no código mosaico e no código cristão. E é interessante notarmos ainda a conexão que Kardec faz entre o Espiritismo e os códigos de Moisés e de Jesus: em sintonia com o código mosaico, na terceira parte de O Livro dos Espíritos, ele sintetiza o código espírita em dez itens — e o número aqui é emblemático, “coincidindo” com Decálogo mosaico (Os Dez Mandamentos): Lei de Adoração, Lei do Trabalho, Lei de Reprodução, Lei de Conservação, Lei de Destruição, Lei de Sociedade, Lei do Progresso, Lei de Igualdade, Lei de Liberdade, Lei de Justiça, Amor e de Caridade; e em sintonia com o Cristo, ele define a regra máxima e modelo absoluto de conduta, pelo que vai dizer que a moral espírita é a moral cristã:
A conexão entre estas três grandes revelações está explícita perfeitamente no primeiro capítulo de O Evangelho segundo o Espiritismo: ‘Não vim destruir a lei’, de onde recortamos o elucidativo trecho que segue:
Por outro lado, podemos entender que as leis naturais que só Deus e os Espíritos superiores conhecem a fundo seja para nós também uma espécie de código, um mistério natural, que pouco a pouco vai sendo revelado — ou decodificado — de acordo com a vontade divina e o planejamento didático dos instrutores espirituais, razão pela qual nos permitimos considerar Allan Kardec como um dos decodificadores (e aí não mais um codificador), ou um tipo de tradutor, já que então está convertendo (criando uma versão inteligível) esse saber oculto para a nossa linguagem a fim de que possamos melhor apreendê-la, como está definido nas palavras kardequianas aqui reproduzidas:
Em suma, a codificação kardequiana não é tão simplesmente um conjunto de leis, conceitos técnicos e instruções; é de um desenvolvimento dinâmico cujos efeitos são ilimitados. Por conseguinte, Allan Kardec — o codificador do Espiritismo — não se limita a ser o compilador da Doutrina dos Espíritos; ele é partícipe ativo do processo de codificação, coautor da obra toda, que é uma das acepções aplicáveis ao termo codificador. As controvérsias, ademais, ficam por conta da imprecisão da nossa linguagem.
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