O mal, dito como a essência de todo o sofrimento e infelicidade do mundo, tem sido há muito objeto de discussões filosóficas e religiosas, sendo inclusive colocado às vezes como um empecilho racional para a existência de Deus, pois que daria margem para se supor que a divindade ou não fosse onipotente a ponto de poder banir o mal, ou não fosse perfeitamente boa a ponto de consentir o sofrimento de suas criaturas. Algumas religiões propõem o mal como uma força ativa e oposta ao Bem, numa ideia de dualidade adversa em face do equilíbrio universal — o Bem versus o Mal, personificados respectivamente em Deus e Satanás. A Doutrina Espírita soluciona o problema do mal ao apresentar a justiça, bondade e sabedoria do plano da Criação, em que o mal, não sendo algo concreto e tão pouco personificado, nada mais é do que a imperfeição das coisas, que se faz necessária para o desenvolvimento das inteligências e das virtudes espirituais.
Origem e essência do Mal
A ideia errônea de que o mal seja uma coisa em si, como qualquer objeto ou criatura, pode levar alguém a crer que seja então uma criação de Deus — o supremo criador do Universo. Neste caso, por ter criado o mal, Deus ficaria desprovido do atributo de infinita bondade, uma vez que seria o responsável primordial do sofrimento das suas criaturas, cujas consequências ficam ainda mais dramáticas quando se leva em conta a teoria das penas eternas e a condenação irrevogável das almas lançadas ao fogo do inferno.
O Espiritismo não interpreta o mal como uma coisa criada, como a luz, o ar, a terra, o fogo etc. Se tivesse que ser assim, certamente, Deus não o feito, pois que Ele é de infinita bondade. Para começar, a classificação daquilo que é bom ou mau passa pela subjetividade, em que, de acordo com o seu nível evolutivo, cada indivíduo interpreta a seu modo. Em uma comparação vulgar, para o aluno preguiçoso, a escola pode ser mesmo um inferno real; noutra: enquanto o leito hospitalar pode ser repugnante para o são, representa um portal salvador para o enfermo. O mal é então uma circunstância adversa ao bem-estar e as pretensões pessoais dos indivíduos. Desta maneira, a estiagem é um mal para aquele que espera pela chuva, assim como o trabalho é um terrível mal para o preguiçoso.
Entretanto, há quem diga que a possibilidade dessas circunstâncias não deixa de ser obra divina; Deus então seria culpado por permitir que haja lacunas na felicidade humana, em decorrência de não prover os homens de tudo o que lhes preencha, a fim de que estejam satisfeitos. Além do que, se bem haja males resultantes das ações dos homens — caracterizados como expiações —, há os males comuns, como as angustiantes necessidades fisiológicas, as epidemias, as tragédias naturais, a perda dos entes queridos e a própria morte. Todos esses malefícios não seriam de responsabilidade divina?
Em resposta a essas questões, a Doutrina dos Espíritos nos dá uma interpretação racional e consoladora: os males, ou as circunstâncias adversas à felicidade humana, são condições a que todos os Espíritos se submetem dentro do curso evolutivo. Como os Espíritos são igualmente criados simples e ignorantes — ou seja, inocentes e isentos de qualquer culpa original e inexperientes —, todos precisam passar pela estrada do aprendizado intelectual e moral, através da convivência mútua ao longo da série de reencarnações, até que atinjam a perfeição de suas qualidades. Para tanto, Deus deu a todos as mesmas aptidões e os mecanismos para desenvolvê-las, cabendo a cada qual esforçar-se por promover suas capacidades. Os mundos brutos, as necessidades fisiológicas e todas as problemáticas que envolvem as criaturas nessa jornada formam o laboratório perfeito para que eles possam desenvolver suas inteligências e virtudes morais. A Criação, inacabada e aparentemente imperfeita, mostra-se então a ferramenta perfeita para os Espíritos chegarem à perfeição e, consequentemente, à plena felicidade.
"Como o homem tem que progredir, os males a que se acha exposto são um estimulante para o exercício da sua inteligência e de todas as suas capacidades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios de evitar esses malefícios. Se ele não tivesse que temer nada, nenhuma necessidade o induziria a procurar o melhor; seu espírito se entorpeceria na inatividade; nada inventaria e nem descobriria. A dor é o estímulo que impulsiona o homem para frente, na estrada do progresso."
Allan Kardec, A Gênese - cap. III, item 5
Mal e imperfeição
Nesse contexto, o mal é a imperfeição. Por sua vez, como já vimos, a imperfeição não é uma coisa má, e sim uma necessidade providencial para o desenvolvimento espiritual, sem o que os Espíritos não teriam como evoluir e chegar à perfeição. Imperfeição é uma obra incompleta que precisa ser completada com perfeição. Evidentemente, esse processo de aperfeiçoamento requer trabalho, esforço e resignação, em que a dor e o sofrimento são proporcionais ao cumprimento dos deveres de cada um. Aquele que compreende a natureza espiritual e o plano divino se assemelha a um alpinista diante da mais alta montanha. Ele a escala, passando por todas as adversidades, confiante de que topará o cume daquele curso, de onde terá a seus olhos, com mérito, a mais alta paisagem e a realização plena de sua carreira. Longe de blasfemar a montanha pelas dores e os percalços pelos quais teve que passar, ele a exalta, pois ela lhe terá propiciado a glória do mais alto desafio. Essa a mentalidade do Espírito evoluído diante das provas que Deus lhe impôs e que ele venceu meritoriamente.
Portanto, a concepção espírita responde satisfatoriamente a outra indagação comum: a de que Deus poderia ter feito o mundo perfeitamente acabado e os Espíritos já evoluídos, isentando-os do trabalho, da dor e do sofrimento. Se assim fosse, os Espíritos não teriam a plena substancia do conhecimento, visto não terem experimentado as adversidades, e nem o mérito de suas qualidades morais.
Adversidades naturais e males arbitrários
Contudo, é preciso distinguir os males naturais — ou melhor, as adversidades comuns impostas a todos os seres, provas naturais e instrumentos imprescindíveis para o desenvolvimento das capacidades espirituais — e os males arbitrários, aqueles que os indivíduos provocam contra si e contra o seu próximo. Para estes casos, a justiça divina prevê a consequente expiação, para reparação dos danos e reaprendizado da conduta moral.
"Porém, os males mais numerosos são os que o homem cria pelos seus vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição e de seus excessos em tudo. Aí está a causa das guerras e das calamidades que estas acarretam, dos conflitos, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, da maior parte, afinal, das enfermidades."
Allan Kardec, A Gênese - cap. III, item 6
Os Espíritos têm o livre-arbítrio para atuar conforme suas vontades e seu nível evolutivo; quanto mais evoluído, mais liberdade a maior o raio de ação. Por conseguinte, quanto mais consciente de suas responsabilidades, mais graves as consequências de suas más ações. Assim é que o convívio social estabelece a mais poderosa ferramenta evolutiva, seja para a cooperação entre os Espíritos simpáticos, seja como provação para aqueles envolvidos em antipatias.
Sofrimentos voluntários
Entre os males arbitrários incluem-se as mortificações e autoflagelações com que certos religiosos supõem agradar a Deus.
Visto que os sofrimentos deste mundo nos elevam, se os suportarmos devidamente, aqueles que nós mesmos nos criamos também nos elevam?
O Livro dos Espíritos, Allan Kardec - Questão 726
"Os sofrimentos naturais são os únicos que elevam, porque vêm de Deus. Os sofrimentos voluntários de nada servem, quando não servem para o bem dos outros. (...) Por que de preferência não trabalham pelo bem de seus semelhantes? Vistam o indigente; consolem o que chora; trabalhem pelo que está enfermo; sofram privações para alívio dos infelizes e então suas vidas serão úteis e, portanto, agradáveis a Deus. Sofrer alguém voluntariamente, apenas por seu próprio bem, é egoísmo; sofrer pelos outros é caridade: tais os preceitos do Cristo."
O mal nos indivíduos
No seu curso evolutivo, os Espíritos passam pelo período inicial equivalente ao da infância, quando são guiados instintivamente para o cumprimento de suas necessidades básicas de sobrevivência. Somente à medida que desenvolvem o intelecto é que eles passam a ter consciência das consequências e então qualificam seus procedimentos. Naquele estado inicial, o organismo físico exerce grande influência sobre as ações dos indivíduos, aproximando-os aos animais, influência essa que só é sobreposta pela inteligência quando eles se voltam para as coisas espirituais e dominam suas paixões materiais.
Nesse contexto, aquilo que o senso comum chama de "instinto do mal" é na verdade a ausência da inteligência, que ainda está por ser desenvolvida. Não há, portanto, uma essência naturalmente maligna no organismo ou no íntimo das almas, mas ignorância, desconhecimento das coisas e dos valores morais. Uma vez adquirida a consciência das consequências de seus atos, o indivíduo tem o livre-arbítrio para agir. As imperfeições que fizer não poderão ser atribuídas mais ao instinto, embora este continue a lhe influenciar; por outro lado, terá todo o mérito pelo bem que fizer, por resistir aos apelos físicos.
Enquanto não fortalecidos espiritualmente, os indivíduos sofrem a influência das necessidades físicas e estão sujeitos aos vícios e ambições materiais, que atrasam sua evolução e geram todos os males sociais, pois sempre que alguém se usurpa de um bem, prejudica aos outros. Entretanto, todas essas tentações são perfeitamente superáveis através do desenvolvimento espiritual.
Há paixões tão fortes e irresistíveis que a vontade não possa dominar?
O Livro dos Espíritos, Allan Kardec - Questão 911
"Há muitas pessoas que dizem 'eu quero', mas a vontade só está nos lábios. Querem, mais ficam muito satisfeitas que não seja como querem. Quando o homem crê que não pode vencer as suas paixões, é que seu Espírito se agrada delas, em consequência da sua inferioridade. Aquele que procura reprimir suas fraquezas compreende a sua natureza espiritual. Vencê-las, para ele, é uma vitória do Espírito sobre a matéria."
Espíritos e almas ainda imperfeitos podem conservar suas más tendências e atentar contra o próximo enquanto envoltos da ignorância em supor que eles levam alguma vantagem imediata. Nisso, desenvolvem os sentimentos de egoísmo e orgulho, em detrimento do bem-estar dos demais, julgando que o mal (suas más ações) lhes seja favorável. Entretanto, a marcha irresistível do progresso faz com que todos — cedo ou tarde — compreendam a real desvantagem do mal (as imperfeições) e, de oposto, os superiores benefícios do bem, fazendo com que todos almejem e passem a trabalhar para aperfeiçoar-se, eliminando de si todo o mal (imperfeição).
O conhecimento das leis espirituais — para o qual a educação espírita exerce um papel fundamental — e, consequentemente, a felicidade superiora reservada aos Espíritos adiantados são forças extraordinárias para que os indivíduos superem seus vícios carnais. No entanto, mesmo diante de toda essa ciência, quando uma sociedade se mostra relutante e tendenciosa às más tendências, a providência natural é a própria proliferação do mal, até que o esgotamento das paixões perniciosas sirva de ilustração efetiva de seus falsos valores, pelo que se diz que bem ao lado de todo o mal, Deus colocou o devido remédio (ver O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec -- cap. V: "Bem-aventurados os aflitos").
O mal nas tradições religiosas
Algumas culturas e crenças basearam-se na ideia de que o mal seja uma das potências do Universo, adversa ao bem, formando uma dualidade natural para o equilíbrio das coisas. Assim é que surgiram sistemas mais ou menos equivalentes, tais como: Deus e Satanás, na tradição judaico-cristã; Alá e Iblis, no Islamismo; Aúra-Masda e Arimane, no zoroastrismo e mitologia persa; o Reino da Luz e o Reino das Sombras, no maniqueísmo; Yin e Yang, no taoismo chinês etc.
Na tradição cristã — a mais expressiva no Ocidente — não há a dualidade natural, pois no princípio era somente Deus, mas passou a existir desde quando um anjo (Lúcifer) rebelou-se contra o Criador, assumindo o caráter de Satanás, e, juntamente com os demais demônios, passou a trabalhar pela perdição da Humanidade. Segundo essa crença, Deus então teria estabelecido o inferno como morada definitiva para esses anjos rebeldes, bem como para as almas que se deixassem levar pelas suas tentações e se afastassem do Pai Celestial.
A Doutrina Espírita refuta essas crenças, tanto pela lógica dos fatos, quanto pelas revelações dos Espíritos. Ela desmistifica a ideia da existência concreta do mal ou de sua personificação (como o Diabo). O princípio de unicidade e onipotência divina exclui os sistemas de uma dualidade de forças que controlem ou equilibrem o Universo, assim como a ideia de seres naturalmente devotados ao mal (demônios). Também o atributo de infinita bondade da divindade é incompatível com a proposição da condenação irreversível; Deus não poderia faltar com a misericórdia para com as criaturas imperfeitas que desejam se requalificar — o que desmente a existência de um lugar qualquer destinado ao eterno suplicio de almas (inferno).
"Como o sofrimento depende da imperfeição, bem como o prazer depende da perfeição, a alma traz consigo o próprio castigo ou prêmio, onde quer que se encontre, sem necessidade de lugar circunscrito. O inferno está por toda parte em que haja almas sofredoras, e o céu igualmente onde houver almas felizes."
Allan Kardec, O Céu e o Inferno - 1ª Parte, cap. VII, item "Código Penal da vida futura" § 5
Em suma, o mal é sempre um bem ainda incompreendido.
Referências
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